Miyazaki e Heidegger - uma visão compartilhada sobre a sacralidade da natureza.


Eu gosto de traduzir e trazer para o Dissidência Pop alguns textos e entrevistas bacanas que encontro na internet que estão apenas em língua inglesa, e como fazia tempo que eu não publicava nada nesse sentido, resolvi apresentar um texto interessantíssimo que é de suma relevância nesse cenário atual de debate sobre preservação ambiental x desenvolvimento econômico.

Antes de levantar qualquer bandeira, o texto fornece uma visão conciliadora entre o desenvolvimento tecnológico e a preservação ambiental, descartando qualquer viés puramente extremista. Sabe-se que Miyazaki é forte crítico da sociedade ocidental, principalmente do "American way of life" dos EUA, por isso em seus filmes quase sempre se encontram discussões sobre a relação entre ser-humano e natureza.

E é justamente em relação à estas ideias presentes em seus filmes, que o autor faz uma relação com o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, um dos maiores nomes da filosofica do século XX. O autor aborda muito a questão de perda da sacralidade da natureza como um dos fatores centrais para a sua crescente destruição. Mas este termo "sacralidade", embora esteja intimamente relacionado à uma concepção religiosa, pode muito bem ser traduzido como a relação do ser humano com a natureza além desta última ser apenas uma mera fonte de insumos industriais e bens de consumo, mas sim um elemento "vivo" que demanda suas próprias necessidades que são fundamentais para a própria manutenção da qualidade de vida na Terra. É essa harmonia de interesses que norteia tanto os filmes de Miyasaki como o pensamento de Heidegger.

Heidegger e Miyasaki respectivamente

O autor, Edward McDougall, é professor de filosofia na universidade de Durham, no Reino Unido.

Como sempre, deixo ao final do texto o link para a versão original, em inglês, para os interessados.  Também deixo ao final, uma lista de outros textos traduzidos pelo Dissidência Pop para vocês desfrutarem. Então, é isso! Fiquem com o texto:

A Viagem de Chihiro com Heidegger. Heidegger e Miyazaki oferecem respostas para a questão vital de nossa era, de como a tecnologia e a natureza podem coexistir.


Parece improvável uma ligação entre o existencialista alemão Martin Heidegger e o maior animador japonês e autor de A Viagem de Chihiro e Princesa Mononoke, Hayao Miyazaki. Contudo eles compartilham um tema recorrente, a relação entre humanos e a natureza. Nos filmes de Miyazaki esse relacionamento é mostrado pela tecnologia que ameaça a sacralidade da natureza, mas, apesar dos conflitos entre humanos e natureza, Miyazaki é otimista e surpreendente próximo dos pensamentos de Heidegger em seus trabalhos tardios.

Tecnologia e a perda dos deuses


Natureza, ou terra, no pensamento de Heidegger é introduzida no livro Origem da Obra de Arte, onde a natureza contrasta com o mundo humano. Heidegger vê a terra como escuridão e abrigo, já que nunca pode ser completamente compreendida ou estruturada pelos seres humanos. Se os seres humanos, afirma Heidegger, viverem em uma clareira, a terra seria as rochas, o solo e as árvores ao redor da clareira.

Esse entendimento da terra como algo além do alcance humano é visto também em o Castelo do Céu (1986) de Miyazaki. Os cristais brilhantes escondidos na rocha desaparecem quando são quebrados pelo martelo. Isso se assemelha diretamente à descrição de uma pedra por Heidegger: “se tentarmos penetrar na rocha esmagando-a, ela não exibirá nada do seu interior além de seus fragmentos. A pedra sumiu instantaneamente mais uma vez.” Se abrirmos a pedra, não podemos revelar o interior intacto da pedra. Isso ocorre porque esse interior original desaparece assim que quebramos a pedra. Nesse sentido, a terra é inacessível, estando na escuridão.

Portanto, quando Laputa transforma a terra (os cristais de rocha) em uma fonte de poder e destruição, a natureza não é mais misteriosa. Isso manifesta a noção de tecnologia de Heidegger, que não se refere a simplesmente vários tipos de equipamentos técnicos como máquinas, porém, mais importante, a maneira implícita pela qual os seres humanos veem a Terra em termos de valor e uso econômico. Os efeitos da tecnologia e do desencantamento também estão presentes no cenário de O Castelo Animado (2004): a magia, que deveria ser antiga e misteriosa, agora é industrializada à medida que os mágicos são recrutados para o exército. Essa tensão também é vista no companheiro de Howl, Calsifar (o espírito do fogo), que não gosta do fato de que o fogo está sendo produzido sob demanda, como recurso, para acender pólvora.

Como a terra permite o mistério, Miyazaki e Heidegger o associam a um senso de sacralidade, divina. Assim, aos seus olhos, nosso domínio tecnológico da terra causa a perda dos deuses. A floresta não pode mais ser um local de abrigo para os deuses, porque se torna um suprimento de madeira. Por esse motivo, ambos buscam desafiar esse domínio tecnológico, destacando seus aspectos destrutivos.

Nausicaä do Vale do Vento (1985)

Um modo de vida alternativo


Apesar de suas posições críticas em relação à tecnologia, nem Heidegger nem Miyazaki defendem simplesmente a sua abolição como um modo de vida. Heidegger admite que ninguém pode frear ou direcionar o progresso da história. Tentar abolir a tecnologia não é possível para Heidegger, uma vez que repetiria o erro de que as pessoas são mestres completas da Terra. Em Ponyo de Miyazaki (2008), Fujimoto (pai de Ponyo) pretende varrer completamente todos os vestígios de tecnologia em uma inundação, na esperança de retornar a um mar primordial. Embora ele não seja totalmente antipático, sua abordagem é fútil e destrutiva. Enquanto Miyazaki e Heidegger rejeitam respostas tão simplistas à tecnologia, ambos estão preocupados com a possibilidade de um modo de vida alternativo.

Essa possibilidade é apresentada em Naussicaä do Vale do Vento de Miyazaki (1982), que se passa em um futuro pós-apocalíptico, onde a Terra se tornou inóspita. Embora isso possa ser considerado como a perda definitiva de qualquer relacionamento humano com a terra, a história realmente se concentra na profecia de um salvador que restaurará esse relacionamento. Diferentemente da redenção judaico-cristã que se dá através de um relacionamento com Deus como um ser supremo, essa salvação ocorre por meio da reconciliação humana com a natureza.

Isso coincide com o projeto de Heidegger em seus trabalhos tardios. Heidegger não considera a visão monoteísta ocidental de Deus como um ser supremo. Mas ele espera recuperar um sentimento religioso de admiração ao habitar na terra. Os deuses para Heidegger fazem parte da natureza, e a natureza é misteriosa. A conexão entre humanos e Terra é, portanto, nossa conexão com os deuses. Portanto, os deuses se perdem quando a natureza é vista apenas como um recurso. Assim, para Heidegger, somente quando deixamos de ver a Terra como um recurso podemos renovar o relacionamento humano com os deuses.

A ligação dos deuses de Heidegger ao mistério e à maravilha terrena é paralela ao folclore xintoísta, uma antiga religião japonesa que se concentra no sagrado da natureza. Essa é uma influência importante no filme A Viagem de Chihiro de Miyazaki, onde as imagens xintoístas são explícitas e, até certo ponto, em princesa Mononoke.

O futuro do relacionamento entre humanos e natureza é deixado em aberto em Naussicaä, mas para Heidegger e Miyazaki esse relacionamento renovado é sagrado porque permite que os deuses reapareçam. Em Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro, temos um mundo alternativo no qual, através dos deuses, as pessoas vêem a natureza como sagrada novamente.

A Viagem de Chihiro (2003)



 A retirada dos deuses: Princesa Mononoke


A perda dos deuses é óbvia e central em Princesa Mononoke, onde a floresta sagrada está sendo transformada em suprimento de ferro. Os animais da floresta deixam de ser deuses e se tornam um suprimento de carne. A destruição final do deus da floresta é realizada por Lady Eboshi, que consegue decapitar a floresta com sua arma. Isso é mais do que simplesmente um ato de violência. O ato de Lady Eboshi representa uma transformação radical da maneira dos seres humanos de ver a floresta.

Poderíamos interpretar Lady Eboshi como uma humanista secular. Suas ações parecem ser racionais na medida em que ela pretende alcançar progresso e prosperidade para sua comunidade. Para ela, não há nada sagrado na floresta e os deuses ou animais são simplesmente obstáculos para a extração eficiente de ferro. Lady Eboshi pode parecer uma pessoa excepcional em seu mundo. Ela não é uma personagem totalmente antipática. Mas, eventualmente, suas ações provocam uma destituição geral, tanto para a floresta quanto para os seres humanos. Através de Lady Eboshi, Miyazaki separa nossa compreensão da tecnologia como simples progresso.

Princesa Mononoke não é apenas uma história de perda. Por fim, a floresta sagrada começa a crescer mais uma vez, apresentando esperança para um novo começo. O destino do deus da floresta não é claro, como revelado na discussão entre a princesa Mononoke e Ashitaka (o herói). A princesa se desespera com a aparente morte do deus da floresta, enquanto Ashitaka está confiante de que o deus da floresta não pode morrer porque "ele é a vida". A mensagem é clara: embora o deus da floresta possa ter sido aparentemente morto, ele ainda existe na santidade da própria vida. A contínua sacralidade da própria vida e a renovação do sagrado sustentam, portanto, a possibilidade de que os deuses retornem. Como a princesa Mononoke, Heidegger é ambíguo no retorno dos deuses. Ele afirma que os deuses que “estiveram lá” retornam apenas no “momento certo”, mas esse momento deve ser algo além da compreensão. No entanto, os humanos podem se prepararem se abrindo para o sagrado.

Princesa Mononoke (1997)

O retorno dos deuses: A Viagem de Chihiro


A Viagem de Chihiro se passa no Japão contemporâneo, com referência ao colapso financeiro do Japão nos anos 90. Também se pode dizer que ocorre após o final da princesa Mononoke, em um mundo onde os deuses se perderam. No entanto, no início do anime, há uma dica de que isso pode não ser o caso. Ao passar pelo pequeno, mas distinto santuário xintoísta ao lado da estrada, o humor de Chihiro (a heroína) é alterado de maneira inesperada e radical - de entediado e apático em relação ao mundo ao seu redor, a uma estranha ansiedade por estar ciente de algo que não pode compreender.

Em contraste, o santuário é amplamente ignorado pelos pais de Chihiro, cuja principal preocupação é mudar de casa. Mais tarde, quando atingem alguns edifícios misteriosos, concebidos como um parque temático abandonado (mas realmente uma habitação para os deuses), a área é considerada apenas como um local potencial para um piquenique. Como Lady Eboshi, os pais de Chihiro não mostram senso de sacralidade ou mistério. Eles acreditam no poder do capitalismo de consumo que, em termos heideggerianos, repousa no poder da tecnologia. Portanto, o pai de Chihiro falha em ver a estranheza óbvia da comida no parque temático aparentemente abandonado, garantindo a ela que ele tem cartões de crédito e dinheiro para pagar pela comida. No sentido heideggeriano, os pais de Chihiro estão presos em um mundo de consumismo tecnológico e os deuses estão para sempre perdidos para eles. Mesmo que Chihiro tivesse contado a história de seus misteriosos encontros com os deuses, é duvidoso que eles tivessem acreditado nela.

Um dos encontros mais significativos de Chihiro diz respeito a um garoto misterioso conhecido como Haku. Chihiro finalmente se lembra da verdadeira identidade de Haku como um rio, no qual ela caiu. Nesse exato momento, Haku também recupera sua verdadeira identidade como um deus do rio, uma identidade que ele havia esquecido desde que o rio havia sido convertido em apartamentos.

Isso é refletido pela lembrança de Haku do nome de Chihiro depois que sua identidade foi roubada pela bruxa Yubaba. A condição de Haku reflete a perda de deuses na tecnologia e mostra como as coisas podem ser diferentes: Haku se torna um deus novamente através de Chihiro, e Chihiro lembra sua verdadeira natureza através de sua interação com o deus do rio. A Viagem de Chihiro demonstra, assim, como humanos e deuses podem recuperar sua verdadeira identidade juntos e como os humanos podem ver a Terra como sagrada novamente.

Esse relacionamento recíproco, pelo qual a natureza (ou os deuses) e os seres humanos recebem sua identidade um pelo outro, manifesta o verdadeiro significado de “habitar” no pensamento de Heidegger. No entanto, o final de A Viagem de Chihiro ainda é ambíguo: quando Chihiro retorna para seus pais, a plateia fica imaginando se Chihiro continuará vendo seus encontros com os deuses como simplesmente um sonho ou uma fantasia infantil.

O Castelo do Céu (1986)

O poder de mudar


Os filmes de Miyazaki e o pensamento tardio de Heidegger compartilham o senso de que a tecnologia não é apenas destrutiva para a natureza, mas também representa uma perda dos deuses. Se a Terra é um suprimento de recursos, ela não pode mais ser um local do sagrado. Enquanto destacam a força destrutiva da tecnologia, Miyazaki e Heidegger também sugerem a possibilidade de transformação olhando para os traços ameaçados da sacralidade da natureza.

Embora não adotemos uma simples solução ludita, como devemos coexistir com a natureza? Esta parece ser uma pergunta em aberto que Miyazaki e Heidegger nos colocam. Quando consideramos seus trabalhos, temos a oportunidade de participar da busca por uma resposta. Quando começarmos a refletir sobre isso, talvez possamos reunir o poder de mudar.

Texto original: Spirited Away With Heidegger Both Heidegger and Miyazaki offer answers to our age's vital question of how technology and nature can co-exist

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