Speed Grapher: o dinheiro tem cheiro de sangue

Vê essas notas voando? Elas não estão aí à toa... É por aí que vai o enredo de Speed Grapher

"Sangue, suor e lágrimas", diz um. "Esse é o cheiro do dinheiro", responde outro [1]. Isso resume bem apropriadamente muito das discussões que Speed Grapher vai fazer. Mas, não, sangue, suor e lágrimas não são do esforço pelo qual alguém obtém dinheiro. Afinal, não é assim que nenhum dos personagens do anime enriqueceu. O sangue é das mortes; o suor é do sofrimento alheio; e as lágrimas são dos que viram seus queridos serem mortos por dinheiro. Com 24 episódios, o anime, lançado em 2005, foge um pouco do convencional pelo seu tema e nos leva a uma reflexão sobre dinheiro, poder e capitalismo.


A princípio, o enredo é simples: temos, de um lado, Saiga, um jornalista investigativo e ex-fotógrafo de guerra e, de outro, um grande clube secreto frequentado só pela nata da sociedade. A diversão dos mega-empresários e políticos é regada a muito sexo e um certo fetiche pelo mistério. Todos usam máscaras para não se identificarem, mas o maior segredo está na outra personagem principal, Kagura. Uma garota de 15 anos ganha o status de "Deusa" nesse clube e por trás de tudo isso está sua mãe, Shinsen Tennouzu, uma grande magnata, e o amante dela, Suitengu. A história se desenrola a partir daí, mas não será meu foco entrar em detalhes para evitar spoilers.

O mundo dos ricos e a relação mercado-Estado

O começo do anime já define bem sua temática ao dizer que a ganância tem levado a decadência do Japão. Se a palavra "capitalismo" nunca é mencionada, fica bem claro que é uma crítica ao sistema. No entanto, se, no geral, as críticas a este modo de produção se focam na pobreza causada por este, o anime vai pelo caminho oposto. Mostrar a riqueza e as luxúrias que os mega-empresários e os políticos podem desfrutar também é uma forma inteligente de escancarar a realidade cruel da concentração de renda. A maioria de nós sabe que muitos passam fome, sofrem com falta de saneamento, água e diversos outros problemas: esse é um lado da crueldade. Mas ver como, com dinheiro se compra o poder político, homens e mulheres, cientistas, fetiches sexuais, o judiciário e até a polícia mostra a outra faceta cruel do sistema.  


O dinheiro compra tudo mesmo em Speed Grapher: pode até fazer sua professora sair pelada de sua casa carregando uma pilha de dinheiro

Eu particularmente gostei muito dessa abordagem. É uma forma de crítica mais sútil, menos direta, mas não menos eficaz na minha concepção. Eu, enquanto aluno de Ciências Sociais, sei que foi sempre tendência nas pesquisas acadêmicas enfatizar a pobreza ao se estudar a desigualdade social, mas o campo de estudos focado na riqueza surge há pouco tempo [2]. Em um dos estudos pioneiros no Brasil, O que faz os ricos, ricos?, Marcelo Medeiros destaca a importância do tema, justificando assim: "uma parte da população mais rica compõe as elites políticas e empresariais cujas ações afetam diretamente uma grande massa de pessoas, inclusive os pobres" [3]. E é o que o anime retrata bem ao mostrar os panos de fundo do mundo dos ricos: como eles mandam e desmandam na política e tiram recursos públicos para seu proveito. 

O anime sempre mostra o envolvimento de políticos, mas ele enfatiza principalmente os empresários. Certeiramente, a meu ver, demonstrando a relação mercado-Estado existente nas sociedades capitalistas. No Brasil, a Lava-Jato tem mostrado bem isso. Embora alguns prefiram ver só a corrupção dos políticos (o que já era sabido e até um clichê entre nós), o que as investigações vem mostrando é a podridão empresarial também. Ou vocês acham o que: que os políticos são os malvadões e vão lá e convencem os puros empresários a aceitar uma propina? Não, né. Obviamente as duas partes tem culpa. 194 empresas envolvidas não é pouca coisa [4]. Enfim, o mercado compra o Estado e o Estado se beneficia do mercado. É um jogo de duas vias em que quem se fode é a população em geral. Há um bom tempo já inclusive [5].

Para além do "bom" e do "mau"

Apesar de mostrar a ganância e os ricos de forma certamente negativa como "o mal", acho que o anime não cai na armadilha de naturalizar a maldade. Isto é, ele não coloca os ricos como intrinsecamente maus e os protagonistas como bons. Quer dizer, se os ricos são maus há alguma história por trás disso. E isso fica bem claro na história de vida do principal vilão, Suitengu. Não vou contá-la aqui para não dar spoilers, mas quem já viu sabe que o que ele passou na sua infância tornou-o quem ele é. E, na verdade, é assim com todos nós. É assim também com a história no geral: o passado tem muito peso no presente.

Suitengu em uma declaração para se refletir

Após descobrirmos o porquê de Suitengu ser "mau", algumas coisas nos levam a questionar se ele é realmente mau. Matar um pai na frente de uma criança é definitivamente mau e ele mata muitos e usa outros. No entanto, quando Saiga pergunta para ele "Quantos você teve que matar?", ele responde: "As únicas pessoas que eu feri nesse país são aquelas que são manchadas pela ambição e dinheiro" [6]. Meu objetivo não é chegar a uma conclusão se ele é mau ou não, mas apenas quero despertar o debate e cada um que chegue a sua conclusão. Mas o interessante aqui é: ele é a encarnação do "mal" no começo da série, depois vemos que tem gente que é mais má ainda e ele, na verdade, está apenas se vingando destes. Se se vingar for algo necessariamente negativo, colocaríamos Guts como o cara mau de Berserk

Imperialismo: breves considerações

Não queria dar spoiler, mas sou forçado já que é apenas nos dois últimos episódios que se menciona algo que quero tratar: o imperialismo. Conforme a luta entre Suitengu e as grandes empresas do Japão vai tomando uma proporção gigantesca a ponto do país poder "quebrar", surge um interesse da comunidade internacional. Mesmo que o código da ONU não permita intervenção, como lembra uma personagem, outro diz que eles não precisam de tal aprovação e que isso vai permitir que eles possam vender armas para o Japão [7]. O objetivo maior seria obter os negócios do Grupo Tennouzu [8]. Nunca é dito, mas só de os personagens falarem em inglês fica claro que é uma menção aos Estados Unidos. 


Alguns burocratas e governantes conversam em inglês e até mesmo o anime usa legendas em japonês nesses momentos

Na hora que vi pensei na invasão dos EUA ao Iraque em 2003 e também aos ataques à Síria em 2017. Suitengu é um produto das ações experimentais do próprio governo americano e quando ele começa a causar problemas a coisa é anunciada como um ataque terrorista. Percebam que é a "ameaça terrorista" que justifica os EUA mandarem foguetes para o Japão. Não sei se foi o objetivo dos criadores (é possível já que as memórias do Iraque estavam "fresquinhas", mas o caso da Síria ainda não tinha acontecido), mas a semelhança com o modus operandi dos EUA no Oriente Médio é enorme. Vejamos: tanto no Iraque [9] quanto na Síria [10] foi dito que era por conta da presença/uso de armas químicas e apoio a grupos terroristas (al-Qaeda e ISIS, respectivamente). As duas acusações se provaram falsas no Iraque [11] e não há clareza ainda sobre a veracidade quanto à Síria. A ironia é que os EUA tem envolvimento no surgimento desses dois grupos [12]. A venda de armas para o Iraque e para a Síria é um ponto bastante em comum com o anime e a única diferença é a forma da riqueza que os EUA quer: não são ações de uma empresa, mas o petróleo.

Considerações finais

Speed Grapher não é um anime de putaria como fazia parecer o anúncio do Animax, mas definitivamente não é para crianças. Não só por cenas como essas, mas pelos seus temas.

Fazer uma análise é, em geral, partir de reflexões grandemente interpretativas e especulativas sobre as intenções do autor original. Mas com Speed Grapher tive a sorte de encontrar uma entrevista com o diretor que endossam algumas de minhas análises. A história foi influenciada pelo cenário econômico-social japonês da época, em que vários suicídios estavam ocorrendo. Segundo o diretor, isso se devia principalmente pelo fato de que a "fortuna financeira é equiparada ao sucesso e espera-se que ela leve à felicidade" [13]. Nesse cenário, Saiga é alguém que se opõe ao sistema e a Kagura alguém preso nele, diz o diretor. Em suma, é um dos animes que mais explicitamente lida com o tema do capitalismo e o faz muito bem.

Notas

[Nota 1: Episódio 18. Aos 4:00, segundo o player do Anima Curse: https://animacurse.moe/?p=41396]

[Nota 2: MEDEIROS, Marcelo. O que faz os ricos, ricos: um estudo sobre fatores que determinam a riqueza. Universidade de Brasília: Brasília, 2003. Disponível em <http://www.gestaopublicaemfoco.com.br/files/12.pdf>. Acessado em 02/02/2016.]

[Nota 3: MEDEIROS. Ob, cit., p. 17]

[Nota 4: http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/quem-e-mais-corrupto-o-estado-ou-o-mundo-empresarial-e-financeiro/]


[Nota 6: Episódio 22. A partir dos 11:55, segundo o player do Anima Curse:  https://animacurse.moe/?p=41400]

[Nota 7: Episódio 23. A partir dos 4:00, segundo o player do Anima Curse: https://animacurse.moe/?p=41401]

[Nota 8: Episódio 24. A partir dos 15:59, segundo o player do Anima Curse: https://animacurse.moe/?p=41402]


[Nota 9: Bush disse em discurso de setembro de 2002: "Em 1991, o Conselho de Segurança da ONU, através da Resolução 687, exigiu que o Iraque renunciasse todo seu envolvimento com terrorismo e que não permitisse que organizações terroristas operassem no Iraque. O regime do Iraque concordou. [Mas] ele quebrou essa promessa. Em violação a Resolução 1373 do Conselho de Segurança, o Iraque continua abrigar e apoiar organizações terroristas […] Em 1991, o regime iraquiano concordou em destruir e parar de desenvolver todas suas armas de destruição em massa e mísseis de longo alcance e em provar ao mundo que o fez  através do cumprimento de inspeções rigorosas. [Mas] o Iraque quebrou todos os aspectos desse acordo." (Tradução livre de "In 1991, the U.N. Security Council, through Resolution 687, demanded that Iraq renounce all involvement with terrorism, and permit no terrorist organizations to operate in Iraq. Iraq's regime agreed. It broke this promise. In violation of Security Council Resolution 1373, Iraq continues to shelter and support terrorist organizations [...]  In 1991, the Iraqi regime agreed to destroy and stop developing all weapons of mass destruction and long-range missiles, and to prove to the world it has done so by complying with rigorous inspections. Iraq has broken every aspect of this fundamental pledge.")

O secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, citou no Conselho de Segurança da ONU como argumentação contra o Iraque que um dos seus propósitos era "compartilhar convosco o que os Estados Unidos sabem sobre as armas de destruição em massa do Iraque e também do envolvimento do Iraque com o terrorismo" (Tradução livre de "to share with you what the United States knows about Iraq's weapons of mass destruction as well as Iraq's involvement in terrorism".)]


[Nota 10: Trump disse após lançar os mísseis: "Não pode haver discordância sobre o fato de que a Síria usou armas químicas proibidas, violou seus compromissos ante a Convenção contra Armas Químicas e ignorou as advertências do Conselho de Segurança das Nações Unidas. […] Esta noite peço a todas as nações civilizadas que se juntem a nós para por fim à carnificina e ao banho de sangue na Síria, e também para acabar com o terrorismo em todas suas formas." Antes disso, a embaixada americana já tinha alegado no Twitter que o governo sírio apoiava o ISIS.]


Sobre o envolvimento com a al-Qaeda: http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2007/04/05/AR2007040502263.html]


[Nota 12: Principalmente através da disponibilização de armas aos "rebeldes" que lutavam contra as "ditaduras" no Oriente Médio. Diz a BBC: "Rebeldes mais tarde admitiram que algumas armas terminaram com grupos afiliados a al-Qaeda" / "Rebels later admitted some weapons ended up with an al-Qaeda-affiliated group."
Novamente a emissora inglesa: "Durante o jihad anti-soviético Bin Laden e seus lutadores receberam financiamento americano e saudita" / "During the anti-Soviet jihad Bin Laden and his fighters received American and Saudi funding." 
Um jornal americano traz em sua manchete: "Na Síria, milícias armas pelo Pentágono lutam com aquelas armas pela CIA" / "In Syria, militias armed by the Pentagon fight those armed by the CIA"]

[Nota 13: O site Anime News Network entrevistou o diretor. Na sequência, duas perguntas e duas respostas que selecionei, com tradução literal feita por mim mesmo. 

Pergunta: Nosso entendimento é que Speed Grapher vai se passar numa versão futurística de Tóquio onde a divisão entre ricos e pobres é extrema. Isso é apenas um cenário ou há críticias sociais que você e os outros criadores estão querendo passar? / Our understanding is that Speed Grapher will take place in a futuristic version of Tokyo where the divide between rich and poor is extreme. Is this merely a setting, or is there some social commentary that you and the other creators are trying to put forward?

Resposta: Atualmente, há numerosos casos – indo até dezenas de milhares – de pessoas cometendo suicídios anualmente no Japão, incluindo alguns relacionados a problemas ou dilemas financeiros. Nós criamos um padrão em que a fortuna financeira é equiparada ao sucesso e espera-se que ela leve à felicidade. Ao trabalhar em Speed Grapher, que foi direcionado a um público mais maduro, nós sentimos que deveríamos fazer algo para estimular o público intelectualmente. / Currently, there are numerous cases – running up to several tens of thousands - of people committing suicides occurring annually in Japan, including those related to economic concerns or worries. We've created a standard where financial fortune is equated with success and is expected to lead to happiness. When working on Speed Grapher, as it was aimed at a more mature audience, we felt that we should do something to stimulate the audience at an intellectual level.

Pergunta: Muito pouco se sabe sobre Speed Grapher a essa altura, pois ainda vai estrear na TV japonesa. Você pode nos dizer um pouco sobre os detalhes mais interessantes do show? Não tanto sobre os detalhes e acontecimentos do enredo, mas sobre o que se trata o show e o que move os vários personagens? / Very little is known about Speed Grapher at this point, since it has yet to premiere on Japanese TV. Can you tell us a bit about the finer details of the show? Not so much the plot details and events, but what the show is about and what drives the various characters?

Resposta: Bem, há o sistema que eu mencionei anteriormente, e em Speed Grapher o protagonista virou de costas para o sistema, ele não acredita nele. Enquanto isso, o outro personagem é uma garota que está presa pelo sistema. / Well, there's the system I mentioned before, and in Speed Grapher the Protagonist has turned his back on this system, he doesn't believe in it. Meanwhile the other character is a girl who is trapped by the system.]



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