Her Story, Quebra-Cabeça Investigativo.

Quão fascinante pode ser uma pesquisa? Bom, algum dia você já deve ter se pego abrindo artigo atrás de artigo no Wikipedia, revirando um álbum de família ou investigando a vida de alguém online (hihihi). Quem passou por isso sabe que nesses raros momentos há algo que te imerge, é uma curiosidade pura e constante que flui. Mas, esse momento tão pessoal pode para ser replicado na arte? Te apresento Her Story, aonde você joga pesquisando.


Abre uma interface de computador antigo na sua frente com o software de pesquisa já com uma palavra pesquisada: “Murder” (assassinato), logo abaixo alguns clipes, você clica e uma mulher fala, e depois de ver os clipes você percebe que a ferramenta de pesquisa busca por termos dito por ela. E por aí vai, cada clipe você descobre algo, e toda vez que um lugar, um nome, ou algo que o jogador achar interessante é citado já ativa sua imaginação, te impulsiona a continuar pesquisando e pesquisando. E graças a escrita primorosa de Sam Barlow sempre tem algo a ser descoberto, e você está envolvido. Sim, pode ter sido difícil quebrar a primeira barreira, mas você está tomado por essa sensação agora. Isso foi Her Story para mim, e para pessoas o suficiente para garantir ao criador uma serie de premiações impressionantes, além de um “sucessor espiritual” que foi apresentado na E3 desse ano.

O jogo tem o que eu chamei de “quebra-cabeça narrativo”, cada peça implica um espaço para outra, e a cada acerto forma uma parte de uma imagem, o objetivo é ver tudo, uma única imagem. No caso do jogo, cada trecho você aprende algo e por fim aquela gratificante sensação de saber a história (dela). O jogador pode ter acesso a todos os clipes, basta saber a palavra certa, logo nenhum clipe está fora de alcance, só escondido nas sombras, e isso te dá uma sensação de liberdade. É algo que me tocou como novo, não lembro de algo similar em videogames, mas não é só de novidade que ele se sustenta, o que o jogo causa criando esse quebra-cabeça lento e pessoal é por um bom motivo: o jogo é investigativo. Digo sem medo que é o melhor jogo de investigação que eu já joguei, nunca me senti tão intrigado, tão curioso, e as revelações nunca pareceram tão interessante quanto aqui.

Único e singular, qualidades maravilhosas para quem experiencia e uma bela dor de cabeça para quem tenta explicar, mas Her Story merece esse esforço. Se já tiver conhecido, ou até jogado, você sabe do que eu estou falando, porém se nunca ouviu falar (como é natural, afinal é um VERDADEIRO indie) aguenta comigo. O jogo é simples e curto, e simplicidade é ouro em game design, afinal quanto menos distrações mais evidentes são as mecânicas fundamentais: Sem sistema de pontuação, nada de fase nova, zero upgrades ou recursos para manejar. Converter esta simplicidade em engajamento é algo que exigiu verdadeira genialidade de Sam Barlow – escritor, designer, programador, produtor e distribuidor (eu disse, é um verdadeiro indie) – e dessa genialidade eu quero me aprofundar um pouco. Começando pelo mais obvio, a interface.

E um pequeno aviso: haverá pequenos spoilers. É impossível se aprofundar sem acabar esbarrando em algumas revelações, porém o jogo tem muita coisa a se revelar. Se quiser jogar antes de ler é o ideal, o jogo vende na Steam e na GoG, além de estar disponível para iOS e Android (não recomendo muito, perde muito da “magia” da imersão). Mas se for ler e quiser jogar depois pode ir sem medo que os spoilers são mínimos e o jogo tem muito mais a oferecer.

A interface também conta uma história


A baixa saturação das cores, o ruído do monitor, o design quadrado dos elementos naquela tela as cores frias remetem a um sistema operacional antigo, para os mais atentos perceberá a similaridade com o Windows 95. Assim o jogo estabelece uma relação com o passado, que se trata de um sistema antigo e abandonado, sendo um equivalente digital a um plano de uma pilha de arquivos velhos em armários. Dentro do operacional tem um software já aberto, um banco de dados chamado L.O.G.I.C. A interface tem nela desenhada um escudo que remete a uma instituição governamental, como um sistema interno de segurança pública. O cenário é esse, você usando um velho PC do governo.

Interface do jogo

Além da dimensão estilística tem o quão didático é a interface, o quanto ela contextualiza. O jogador está em constante conflito com a interface, é o “campo de batalha”. A interface não permite ser burlada, não permite interpretações, é um sistema frio (como computadores são) que respondem a exatidão de comandos e a ignorância do jogador de quais comandos serão necessários para prosseguir a narrativa da forma mais fácil possível é parte do desafio do jogo. Quando o jogador faz uma pesquisa como “Simon” e embaixo dos cinco vídeos aparece escrito “61 entries found. ACCESS LIMITED TO FIRST 5 ENTRIES” (61 inscrições encontradas. ACESSO LIMITADO ÀS PRIMEIRAS 5 INSCRIÇÕES), e o jogador percebe, que só é possível encontrar cinco vídeos por vez, e possivelmente percebendo também a inexistência dispositivos alternativos. É uma escolha estratégica e artista de Sam Barlow, sempre optando pela sutileza nas escolhas de interface, em oposição a usar um tutorial convencional.

Para além existe a questão metalinguística de interagir em uma interface dentro da interface. Construindo assim uma limitação, uma ideia de emulação de um sistema anterior e mais limitado causa a quem está interagindo uma ideia de espaço reduzido, como uma claustrofobia. O fato de se ver poucos ícones, não ter acesso a internet, ou recursos diversos que se pode encontrar em outros OS contribuem ao estranhamento. É um constante jogo de familiaridades e estranhamentos. Essa estratégia é um elemento comum em escrita de horror ou suspense, como no filme Psicose do Hitchcock: A recepção do hotel Bates parece uma típica recepção de um hotel de beira de estrada, mas os animais empalhados criam um desconforto, mas só um desconforto e desconfiança, para o espectador se sentir constantemente incomodado. O Her Story alcança esse desconforto, porém não o usa para chegar ao horror, mas sim para criar uma ideia de “iminência”, de uma tensão que precisa de dissolução. Uma dissolução vinda de você.

Imersão Conduzida


Her Story é, em uma análise sensível, um jogo extremamente pessoal. E solitário, sóbrio e com tanto espaço para o raciocínio pessoal que é inevitável que o jogador vá em algum momento largar os vídeos e explorar a interface. O ritmo proposto do jogo é lento, pelo ato de ter que ouvir com calma o que a entrevistada tem a dizer com atenção e imaginar o que é construído por trás de cada revelação, sendo muitas delas simples e até banais, consiste em uma atividade similar a pegar um velho álbum de fotografias de um familiar: cada peça tem algo de misterioso, um lugar ou pessoa, um tempo ou acontecimento que pede um olhar além do frio e preciso de uma parte interessada em um resultado, mas de um indivíduo curioso. No jogo só quem tem voz é uma mulher, em uma série de vídeos gravados muitos anos no passado, e nada nem ninguém dita como o jogador deve explorar os vídeos e que conclusões ele deveria tirar de cada parte, existe uma liberdade que respeita e permite divagações.

Depoimento.

Mas para que esse processo aconteça inteiramente o jogador tem que ser impedido de quebrar a proposta do jogo. Se o jogador for recompensado por digitar qualquer palavra sem pensar na conexão com os outros vídeos e conseguir progredir, ele pode abusar disso e tornar a atividade em uma mecânica de tentativa e erro até que o jogador se entedie e pare. Para contornar essa brecha sem tirar do jogador a liberdade, Sam Barlow usou dos próprios clipes para conduzir o jogador. Digite "gun”, “pistol” e “revolver” e não terá resultado, se digitar “sex” o primeiro vídeo será ela indignada dizendo “Sério? Você vai me perguntar sobre minha vida sexual? Quero dizer, isso não é pessoal?”. E se apostar na teoria depondo, e não uma mulher só, quando procurar por “twins” o primeiro vídeo é ela rindo da ideia, e depois falando a frase “você está mesmo me perguntando isso?”. Essas interações mostram, em três possibilidades, jeitos de desestimular o jogador a aleatoriedade a partir dos resultados, o primeiro sendo o mais seguro: não apresentar resultados, no decorrer de todos clipes de vídeos nunca é mencionado “"gun”, “pistol” e “revolver”, impedindo assim o jogador de tentar achar a arma do crime por pura sorte. O segundo é punir a aleatoriedade com um leve insulto, como no caso do “sex” que ridiculariza tentar abordar a partir do sexo. Em terceiro lugar, e da forma mais interessante, é a personagem responder de forma a despistar o investigador, obtendo dois efeitos diferentes para diferentes perspectivas: a personagem reage de forma a insultar o jogador afastando possivelmente quem chegou até o clipe sem contexto, mas ao mesmo tempo desafiando o jogador atencioso que, seguro que existe fundamento na pergunta, decide investigar mais. De fato, a personagem esconde um segredo sobre uma gêmea (sendo ela real ou não) e na tentativa de esconder dos investigadores implícitos (atrás da câmera) e, indiretamente, da persona que você assume, fica a mérito do jogador enxergar através da tentativa de despistar.

O fato de o jogo ser curto colabora com a proposta, durando em média três horas de jogo, o jogador ainda tem graças ao ciclo círculo hermenêutico a possibilidade de alternar atenções diferentes sem sair do jogo. Muitos jogadores usam cadernos para fazer anotações, ou exploram a interface, voltam a vídeos anteriores organizam o pensamento, o jogo tem uma dimensão de desafio interpretativo, que vai além do puzzle convencional, aonde o problema é resolvido e o jogo progride, o desafio interpretativo diz respeito ao acumulo do que o jogador aprendeu, a narrativa se torna peça no tabuleiro.

A História Dela


Esses recursos narrativos, técnicas e cuidados seriam esquecíveis se seu resultado culminasse em nada. Todas as ferramentas usadas devem construir algo de solido, e Her Story consegue imprimir em quem joga uma experiencia marcante, consegue dar voz  a uma personagem cativante e misteriosa, deixar o jogador que termina o jogo, independente de quanto de informação foi absorvida, com a persistente sensação de que uma janela se fechou em algo maior, e que a vida continua por trás daquele jogo. O núcleo narrativo do jogo, o que move e justifica tudo, é ouvir a história dela. Quem é ela? Por que ela? Como ela...? Com quem ela...? No jogo é sempre ela, a Hannah Smith. Tudo que acontece passa através da boca dela, com exceção de dois bilhetes encontrados no computador e uma janela de chat aberta no final, perguntando se o jogador terminou a investigação.

A fragmentação narrativa de Her Story não é gratuita, é perfeita pra proposta do jogo. A trama é uma bagunça cheia de viradas e revelações que talvez de forma linear ficaria cansativo, mas no jogo é um grande mergulho na mente de uma personagem fragmentada. A narração do jogo expressa a situação psicológica da Hannah, que está desequilibrada enquanto tenta formular explicações sobre sua vida e passado sob a luz de acusações. O jogador se perde enquanto a Hannah se perde, o jogador ganha quando vê ela se abrindo e o mistério progride de forma similar a Psicose na forma que o Norman Bates se revela ao espectador: De uma figura inocente para suspeita, de suspeita para culpado e de culpado para insano. Mas não uma insanidade furiosa, mas uma sutil e trágica. Quando Eve diz que Hannah se foi, se o jogador assumir que é uma personagem com transtorno de personalidade, isso implica que a personagem no final saiu do conflito interno e internalizou uma personalidade de forma perigosa, assim como o Norman Bates em Psicose internaliza a impressão da mãe dele como personalidade fixa. A intensidade dos conflitos internos dela são expressos na intensidade do jogo pois tudo está enraizado nos vídeos, é um design econômico, porém arriscado que só obteve sucesso pela disposição cuidadosa de Barlow.

Não existe narrador para elucidar os meios termos, não existe uma personagem em primeira pessoa que de sua própria opinião ou teoria no assunto, não existe um objetivo claro tendo em vista que o jogador só entende a motivação de sequer estar lá no final do jogo. Her Story confia nas suas técnicas de imersão e condução e, principalmente, no jogador. Esse quebra-cabeça humano chamado Hannah, é fortalecido e apresentam um desafio que respeita a capacidade do jogador. Sem tentar criar um comparativo qualitativo entre outras formas de arte, mas fica claro que essa experiencia só é possível em como um jogo fragmentado, com a participação ativa. Tentar um enigma similar em outra mídia acabaria em algo como o anime Serial Experiment Lain, que apesar do sucesso perdeu muito espectador por ser uma trama desafiadora, e Lain conta com uma protagonista. Para quem viu o anime: tente imaginar o anime sem a Lain, acompanhando só em trechos aleatórios, seria muito inacessível.

Esse é o potencial da narrativa quebra-cabeça em construir uma trama envolvente e significativa. A história de Hannah Smith é marcante porque pode ser experienciada dessa forma pessoal, livre e honesta. Onde está tudo disposto e acessível, mas o caminho para a resolução narrativa é o caminho para o esclarecimento, é colocando cada peça no lugar, conectando uma com a outra a partir dos que o jogador já tem, é dando logica ao caos que são as peças e para o Her Story é dar sentido a uma personagem conturbada.

Por fim


Espero que chequem o jogo, como eu disse ele é bem curto e bem barato, afinal é um indie feito por um só cara (tipo Undertale). Esse ano sai também o Telling Lies do próprio Sam Barlow que recebeu na E3. Tenho certeza que valerá a pena, se não confia em mim, bom, o jogo também recebeu dos maiores prêmios do game design, incluindo um BAFTA (premiação séria, diferente da VGA).

Her Story, no fim das contas, é surpreendentemente simples para quem joga e imensamente complexo para quem analisa, tentar expressar o que acontece enquanto joga é algo que eu julgo mais difícil que cinema, tem muitas variáveis e é muito fácil se perder jogando e esquecer de anotar. É contagiante, e esse adjetivo é cada vez mais difícil de usar para um jogo, principalmente se você se sente saturado de dispositivos narrativos idênticos aos jogos que você joga desde pequeno. Poucas horas de jogo, muitos dias na cabeça, valeu a pena.

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