Belladonna of Sadness: História vista por outros olhos

O pôster é uma releitura da obra O Beijo de Gustav Klimt, e traços de seu estilo podem ser encontrados no filme inteiro
Hoje iremos conversar sobre o psicodélico e erótico filme cult Belladonna of Sadness, famoso por possuir cenas fortes e animação excêntrica, mas cuja  maior qualidade é a de contar História sem nem percebermos.

Belladonna of Sadness (daqui pra frente apenas Belladona, para simplificar), do japonês Kanashimi no Belladonna, e que no português ficaria A Tragédia de Belladonna é um filme com duração de 86min produzido pelo estúdio Mushi, com roteiro de Eiichi Yamamoto e exibido pela primeira vez no festival de filmes Cinerama, em 1973, juntamente com duas outras animações da autoria de Osamu Tezuka. Apesar de serem exibidas no mesmo festival, o estilo de Belladonna difere muito das outras duas, contendo traços nada cartunescos, além de possuir tom bem mais pesado, contando até mesmo com conteúdo sexual explícito.

A animação do filme é extremamente minimalista devido ao baixo orçamento, e grande parte desta é composta por imagens estáticas acompanhadas por música ou diálogo enquanto a câmera se desloca. Para se ter uma ideia, em pouquíssimas cenas podemos ver a boca das personagens mexendo enquanto elas falam. O uso de imagens estáticas para contar a estória permite a exibição de cenas fortes para o expectador, como por exemplo um estupro presente nos primeiros 5 minutos da obra. A cena em questão torna claro para o expectador o que houve sem chegar a mostrar explicitamente o conteúdo, transmitindo com precisão a sensação de desespero da vítima.

Entretanto, o minimalismo não se limita somente à animação, sendo ainda mais acentuado na trama, pois a obra possui poucas cenas com diálogo(mas mais que Angel's Egg), as quais são intercaladas por sequências musicais acompanhadas de narração ou visões psicodélicas, as quais muitas vezes mostram delírios das personagens.

Só as características provocantes do filme já seriam o bastante parar dar-lhe uma péssima recepção, mas a isso somou-se o "desleixo" da animação e da falta de estória, e o resultado é que ele foi muito mal recebido em seu tempo. Embora tenha adquirido status cult nos últimos anos, bem como uma restauração em alta definição lançada em maio de 2016, o filme continua sendo desconhecido pelo público geral até os dias atuais.

É válido reforçar que a falta de qualidade técnica na animação pode ser explicada pelo baixo orçamento, porém, essa afirmação de forma alguma deve ser encarada como uma desculpa, haja visto que, mesmo com esse defeito, o filme é capaz de contar sua estória e satisfazer o leitor com excelentes elementos artísticos.

 As alucinações, música e imagens malucas geram uma cinestesia, isto é, a trama é exposta não somente com estímulos verbais, mas também com música e cenas de forte teor emotivo, permitindo que os expectadores entrem em contato diretamente com as emoções das personagens na situação em que estas se encontram.Tais características lembram o filme americano The Wall, da banda Pink Floyd, e eu particularmente gosto de pensar em Belladonna como seu equivalente oriental, apesar das particularidades de cada um.

Uma das cenas mostradas durante a sequência da peste negra. O uso de linguagem não verbal possibilita ao expectador sentir o que as personagens estão vivenciando.

A arte do filme, diferentemente da trama e da animação, não tem nada de simples. As imagens, embora sejam em grande parte estáticas, possuem muitos detalhes, e lembram aquarelas. Aqui, é válido mencionar o enorme contraste que o design das personagens principais possui quando comparado com o das de menor relevância.

Observe a complexidade do design da protagonista Jeanne em comparação com o das camponesas

Aquarelas estão presentes na maior parte do filme, ajudando a compor um estilo diferente do tradicional

Belladonna possui músicas insanas que lembram filmes americanos de Rock'n Roll, visual que lembra a arte rococó reproduzida em aquarela, estória situada na França Medieval e produção japonesa: isso torna claro que o filme é uma mistura de estilos, algo não tão comum de se ver por aí. O resultado foi uma obra de arte que combina excelentes qualidades daquilo em que se baseou, e cuja mensagem também supera a barreira da nacionalidade, como veremos a seguir.

Por incrível que pareça, isso é uma cena de Belladonna. A qualidade da arte cai um pouco em passagens mais psicodélicas, talvez para ajudar o leitor a delirar, sem lhe dar a oportunidade de ficar apreciando uma bela arte como as outras imagens. Lembra muito o famoso filme musical The Wall.


A trama do filme é baseada no romance La Sorciére(que em inglês foi traduzido como Satanism and Witchcraft) de Jules Michelet, publicado originalmente em 1862. Nesta época, a escola predominante no cenário literário era o Romantismo, na qual os autores idealizavam os cavaleiros da época medieval, fazendo-os virarem exemplos de homem e protagonistas de aventuras fantásticas.

Em La Sorciére, o autor fez algo parecido, mas ao invés disso, idealizou a bruxa. Retratou-as como detentoras de grande conhecimento, banidas da sociedade opressora do Antigo Regime por preferirem orgias as orações, não sendo bem vistas pelo clero e nem pela nobreza.

Livro La Sorciére, o qual inspirou Belladonna of Sadness

O livro de Michelet não era uma ficção, e tinha como objetivo simpatizar com a causa das bruxas, tirando um pouco da imagem horrível que a sociedade tem delas, e portanto resolveu contar a História da bruxaria como vista por elas. Seguindo a proposta de tal obra, Belladonna mostra a Europa Medieval como vista a partir dos olhos de uma jovem camponesa, que é levada à bruxaria devido às horríveis circunstâncias pelas quais passa.

A escolha feita para a classe da protagonista é um recurso interessante, pois assim é possível mostrar a História como vista pelo lado dos derrotados. Neste caso, como vista pelas bruxas, pelas mulheres e pelos pobres, diferentemente do método como aprendemos no Ensino Fundamental e Médio, pois lá ela normalmente enxergada pelos olhos dos vencedores.

O filme conta a estória do casal Jean e Jeanne, dois simples camponeses apaixonados  que habitam a França Medieval. Entretanto, ao invés de mostrar as dificuldades que os dois tem para se unir, a obra se inicia diretamente no casamento dos dois, cerimônia que é realizada sem problemas. Porém, para consumar a união, o marido precisa pagar uma taxa para o Senhor Feudal da região, que é chamado apenas de Milorde. Jean é incapaz de juntar dinheiro suficiente para pagar o valor necessário e isso faz com que o tirano tome um bem muito precioso para os dois, fazendo com que ambos entrem em depressão profunda, iniciando assim a tragédia do casal.

Milorde no centro, careca e com feições esqueléticas. Perceba que também é possível observar uma grande diferença entre o design da nobreza e o deseus servos

Quando os dois se reúnem novamente, a união entre eles está fraca devido à violência do Milorde. Sem a companhia do marido e imersa em tristeza, Jeanne começa a ter visões de uma pequena criatura cuja cabeça lembra um órgão fálico. Ele continuará aparecendo para ela após incidentes traumáticos, aumentando de tamanho a cada ocasião, também realizando atos sexuais com a garota, causando muita dor no processo. 


Jeanne começa a ter visões de uma pequena criatura  a qual lhe oferece poder e vai se tornando maior com o passar do tempo

A entidade sugere que Jeanne comece a vender tapetes para ajudar o marido, e o negócio se revela muito frutífero. Quando chega a guerra, ela tem poder para comandar a aldeia informalmente, enquanto a maioria dos homens e nobreza estão distantes. Durante este tempo, a mulher do Milorde(chamada de Milady) passa a guardar rancor de Jeanne, pois sente inveja do sucesso que ela obteve durante o conflito.


Jeanne começou a usar o verde conforme ganhou poder, pois essa é a cor dos poderosos. No filme, verde também foi chamado de cor do Diabo.


Com o retorno dos combatentes, Jeanne é acusada pelo Milorde de bruxaria devido às roupas chamativas que usava e também devido a sua rápida ascensão na aldeia. Ela é caçada, e seu amado Jean se recusa a ajudá-la. Suas posses são tomadas, sua roupa rasgada, e ela, depois de ser humilhada, consegue fugir da aldeia, indo para o exílio, onde passa a ter visões cada vez mais insanas.



Jeanne é humilhada e perseguida após o retorno do Milorde

Algum tempo depois, a peste negra chega até a aldeia, causando o pânico entre a população. Certo dia, um indivíduo infectado chega à região que Jeanne agora habita. Ela encontra o rapaz e o cura usando uma certa planta, e em seguida ele volta para a aldeia, onde a novidade é espalhada. 

No filme, a peste negra é representada po pequenos glóbulos pretos e destruidores.

 Os habitantes do povoado passam a procurar por Jeanne para serem curados, e uma grande parte deles não volta para a aldeia, devido à horrível situação em que esta se encontra. Essas pessoas que passam a morar com Jeanne criam uma comunidade cujos membros passam os dias dançando alucinados e realizando enormes orgias, lembrando um pouco estilo de vida dos modernos hippies, porém muito mais psicodélico. A existência desta comunidade enfurece a nobreza da região, a qual imediatamente toma providências para tentar aniquilá-la.

Jeanne cria uma comunidade semelhante à dos hippies modernos, reunindo pessoas que fugiam da peste negra. 


 Falar diretamente sobre a trama a partir daqui apenas traria spoilers desnecessários. Na verdade, a estória de Belladonna por si só, pode até ser considerada fraca, mas ela fica mais interessante quando se analisa o contexto em que Jeanne está inserida. Talvez isso não esteja tão claro na animação, e  embora isso seja considerado um defeito para alguns, para mim particularmente é uma qualidade, pois a trama não se limita ao filme, e continua interagindo com o espectador mesmo depois de este ter assistido a obra.

Pois bem, vamos relembrar o seguinte: o livro La Sorciére não é de ficção. Como Belladonna se baseou nesse livro, faz sentido supor que o filme também não seja, e aí as coisas ficam interessantes. Nos próximos parágrafos, analisaremos as partes da estória que já contamos a partir deste ponto de vista. Não haverão spoilers acerca do filme além do que já foi dito, e apenas reinterpretaremos os eventos com essa pequena consideração. Antes de continuar, convido o leitor a fazer rapidamente a mesma coisa sozinho, e isso o preparará para desfrutar da beleza de Belladonna of Sadness.

Pois bem, vamos prosseguir analisando o espírito que aparece para Jeanne. Ele sempre surge após incidentes traumáticos, e na vida real, pessoas que passam por situações assim tem alucinações, então é válido pensar nele como algo advindo da mente dela. Assim, ele seria ao mesmo tempo um reforço, dando-lhe meios para obter poder, bem como um remetente a seu trauma com experiências sexuais. 

O ser em questão é obviamente um demônio, cuja figura se associa com a do Diabo, o qual possui um simbolismo interessante e compatível com o filme. Pois bem: seitas satanistas modernas que adoram tal entidade o identificam como o espírito da verdadeira liberdade, uma vez que desafiou os costumes vigentes no Universo(no caso, as ordens de Deus) ao invés de se submeter à tradição. Na idade medieval, a figura das bruxas era associada ao anjo Lúcifer justamente por se rebelarem contra a moral vigente.

O satanismo se encontra intimamente relacionado à bruxaria, e isso é transmitido no filme pela relação entre a bruxa(Jeanne) e o espírito que a aconselha.


No filme, nossa protagonista recusou-se a vestir roupas normais e a viver como uma dona de casa inerte: ao invés disso, ela preferiu vestir roupas chamativas e a agir por conta própria, não esperando ajuda de seu marido, nem da sociedade. Assim, podemos ver que ela se rebelou contra a ordem, obtendo liberdade e poder. Fez algo análogo ao ato de Satanás, e por isso passou a ser chamada de bruxa.

Se Jeanne fosse capturada, ela teria sido queimada viva, mas escapou da vila, passando a viver no exílio. O que pessoas têm logo após situações traumáticas, ainda mais quando estão isoladas? Isso mesmo: delírios. Isso explica os encontros com o espírito logo após a saída da aldeia. Entretanto, a alucinações posteriores tem uma outra explicação, que a meu ponto de vista, é mais interessante ainda, e será explicada nos próximos parágrafos.

A peste negra chega à aldeia, e nossa heroína consegue curar os infectados com uma erva. Como sabemos, durante toda a História, o homem teve o hábito de associar o desconhecido ao sobrenatural. Por que seria diferente com a cura para a peste bulbônica? Jeanne apenas dava doses de uma planta especial para os necessitados, e assim os curava, sem utilizar o sobrenatural(apesar de até mesmo ela achar que usava), de maneira que lembra a famosa 3º Lei de Clarke: "Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia".

Jeanne curava a peste bulbônica com uma planta de família Belladonna. O que estamos vendo é uma Belladonna utilizando uma Belladonna no filme Belladonna.


Entretanto, além de curar, a planta tem um efeito adicional: aqueles que são expostos à ela ficam muito alegres. Quando se instala a comunidade alternativa de Jeanne, as pessoas continuam mantendo tal comportamento. Nos dias atuais, as atitudes dos membros de tal grupo seriam explicadas pelo uso de drogas alucinógenas ou coisas semelhantes. 

Embora o nome da erva misteriosa não tenha sido explicitado no filme, temos algumas pistas. Em seu livro, Michelet descreve bruxas fazendo uso de plantas da família Belladonna, extremamente venenosas, para tratar doenças.  Tais plantas também conferem efeitos alucinógenos, explicando as orgias e visões malucas que os membros da comunidade teriam a seguir, e também as visões de Jeanne. Obviamente, o nome de tal planta está presente no filme, que agora ganhou duplo sentido, podendo se referir tanto à sua protagonista Belladonna, do italiano "mulher pura" quanto à erva.

Aqui, Jeanne, com visual parecido ao Malévola, adquire a forma de um gato, vista por sua comunidade. Tal efeito pode ser facilmente explicado pelo uso de alucinógenos, mas isso não era óbvio para os habitantes do período.
Como curiosidade, é devido à Belladonna atropa que temos nossa visão atual das bruxas como senhoras de idade que voam em vassouras. Esta erva em particular pode conferir a sensação de voo ao usuário. As vassouras eram comumente usadas para fazer as misturas, assim, as usuárias da planta devem ter tido a impressão de que voavam nestes objetos, os boatos se espalharam e voilà, para nós, bruxas são mulheres velhas que voam em vassouras.

Com a consideração que fizemos, podemos constatar que a estória de Jeanne poderia ter muito bem ocorrido no mundo real: uma mulher comum sofre de abuso, começa a ter visões e se ter comportamento estranho, passando a ser chamada de bruxa. Mesmo as partes mais psicodélicas podem ser explicadas com essa interpretação, que é respaldada pelo livro.

Com isso em mente, é fácil ver que Belladonna of Sadness é de fato um filme histórico, mas que mostra os acontecimentos vividos por uma pessoa simples da época medieval, e não pelos poderosos. Essa maneira de contar História é diferente da maioria das obras que conhecemos, e difere também do meio como aprendemos sobre ela no Ensino Fundamental e Médio, pois durante este período vemos apenas História Política, e não o cotidiano das pessoas comuns.

Neste caso em particular, se não me falha a memória, estuda-se o período medieval uma vez no Fundamental, e outra vez mais detalhada(ou não) no Ensino Médio. Os professores obviamente citam que os senhores feudais, nos quais Milorde foi inspirado, abusavam de seus servos, e provavelmente também sobre a prática do Direito da Primeira Noite, mas apenas isso. Dessa forma, embora tenhamos uma ideia da perversidade do ato, não visualizamos o sofrimento da vítima, porém, em Belladonna, entramos em contato diretamente com essas emoções. Na prática, estamos estudando História, mas sem a necessidade do famoso decoreba, pois acredito ser muito mais fácil lembrar das cenas mais chamativas de Belladonna do que listas resumidas com as características de um certo período que implicaram na ocorrência de um evento histórico, coisa comum em cursinhos pré-vestibular.

 Note que aqui não está se criticando o método de ensino, apenas citando que o filme possui uma maneira alternativa de passar História. A educação pública brasileira sofre falta de verbas e de tempo, impedindo os professores de lecionar corretamente as disciplinas, enquanto a particular muitas vezes é apenas uma empresa cujo produto é a aprovação no vestibular. Tendo isso em mente, seria simplesmente injusto culpar professores por lecionarem com tais limitações.

Divagando um pouco além, pode-se perceber que, além de contar uma estória histórica Belladonna também traz temas feministas. Isso pode ser notado na independência adquirida por Jeanne em relação a seu marido, que permaneceu muito tempo incapacitado e se embebedando constantemente. Isso se torna mais claro no final do filme, quando vemos o rosto de Jeanne aparecer em todas as mulheres de uma multidão, simbolizando que ela é uma mulher comum, como todas as outras. Em seguida, aparece uma imagem de Marianne, símbolo da luta  das mulheres e da nacionalidade da França, acompanhada do comentário sobre a participação feminina na Revolução Francesa, tornando claro o caráter feminista do filme.


Depois da morte de Jeanne, seu rosto aparece no de todas as mulheres presentes. Isso torna clara a intenção dos produtores de mostrar que Jeanne é apenas uma mulher comum, bem como expressa seu caráter como símbolo do feminismo.




Na primeira vez que vemos Belladonna of Sadness, podemos ter a impressão de que se trata apenas de um filme bizarro e sem estória, feito apenas para ver o que se poderia realizar com as técnicas de animação, mas na verdade, este filme é claramente uma obra de arte. O visual é lindo, a trilha sonora cativante, e a falta de técnica na animação é compensada pelo bom uso da deficiência, com minimalismo. O que talvez falte em estória, a obra compensa em História, esmiuçando a prática da bruxaria medieval, sem nem chegar perto de entediar, devido à psicodelia. Além disso tudo, seu tema  não é algo presente em obras históricas, tornando o filme atual até hoje, não somente para o público que o desconhece, mas para quem também já o assistiu, pois aquelas imagens e músicas malucas continuam agradando o expectador da primeira vez até a milésima. Portanto, embora chamar Belladonna of Sadness de obra-prima talvez seja exagero, simplesmente não se pode ficar sem reconhecer suas qualidades, e o fato de este filme ser tão desconhecido é lamentável.

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