Canis Series é um BL que todos deveriam ler




BL. Ah, o BL. Considerado um nicho dentro da própria comunidade otaku, o controverso gênero Boys' Love, nascido do nosso amado shoujo, é muitas vezes ignorado por conta de estigmas construídos em torno dele. Não julgo quem ainda acredita que o gênero seja apenas um porn without plot, um gênero erótico feito apenas para agradar mulheres heterossexuais, já que yaoi, o termo mais usado no ocidente, é um acrônimo para "sem clímax, sem conclusão, sem significado" (やまなし おちなし 意味なし[yamanashi, ochinashi, iminashi]). De fato, ainda é possível achar obras sendo publicadas e fazendo sucesso que possuem essas características, mas é cada vez mais comum encontrar publicações que vão totalmente na contramão desse padrão. Histórias com um plot bem pensado e trabalhado, com personagens complexos que são desenvolvidos durante a obra e arte com traços tanto variados como agradáveis aos olhos estão tomando conta do cenário BL; cenário este que hoje em dia chama mais e mais atenção, já que o gênero se mostra cada vez mais relevante no mercado de mangás.



Por favor, saiba mais antes de só recusar.

Com o passar dos anos, leitores de yaoi estão se tornando mais importantes, mais numerosos e mais exigentes. O autor do site Otaku Champloo avaliou os destaques dos dois grandes prêmios anuais voltados para yaoi desse ano, o Kono BL ga Yabai e Chil-Chil’s BL Awards, e chegou a uma conclusão: fãs de BL querem coisas novas. A fórmula que foi usada repetidas vezes ao longo de todo esse tempo ficou saturada, ninguém aguenta mais. Como resultado, temos esse cenário atual de histórias mais profundas e de todos os tipo e gêneros. Tem terror, esporte, drama, comédia, psicológico... Uma variedade incrível que mostra que o BL atual não pode mais ser resumido a apenas um tipo de romance erótico padrão, como antes eram. Claro, o gênero está longe de ser livre de problemas (uma discussão que deixo para o futuro), mas eles também não atingem todas as obras, diferente do que muita gente pensa.

Por isso, acredito que uma pessoa que não possuí preconceitos e está afim de ampliar seus horizontes na busca de obras novas e de qualidade deveria dar uma chance ao BL. Muitas histórias maravilhosas estão surgindo nesse gênero, muitas artistas incríveis estão começando lá. Por exemplo, Kumota Haruko (Showa Genroku Rakugo Shinjuu) começou sua carreira no BL e se mantém ativa nele até hoje, continuando a criar obras sensacionais dentro do gênero.

Então, aqui em especial, trago a minha indicação do que pode ser a porta de entrada para uma nova experiência pelo mundo dos mangás.

Canis Series e como um BL pode não ser o que você espera


Canis Series é um exemplo de obra que possuí justamente essas características que se chocam com o yamanashi, ochinashi, iminashi. Em publicação na revista bimestral OPERA desde 2013, o shounen-ai (termo que usamos, pelo menos aqui no ocidente, para classificar BLs com pouco teor sexual. Se for para comparar, é algo próximo de um shoujo clichê) é a estreia da autora ZAKK, também conhecida como Ishie Hachi, e começa sua primeira parte da história (composta pelo volume 1 Dear Mr. Rain e os volumes 2 e 3 Dear Hatter) de uma forma bem interessante.


Kutsuna Satoru é um designer e fabricante de chapéus que, por ser muito exigente, aparentemente possui problemas em manter os funcionários de sua loja. O problema é que Satoru vai realizar um evento de comemoração dos três anos da fundação de sua loja e, sem um ajudante, seria impossível tornar a festividade uma realidade. Satoru termina seu expediente e sai numa busca sem sucesso para tentar entrar em contato com algum outro profissional. Quando já está basicamente desistindo, ele se depara com um homem desmaiado em um canto da rua.


Sem pensar muito, Satoru decide ajudar o homem, o qual estava faminto (o motivo do desmaio) e diz ter chegado de Nova York, porém não tem consigo nenhuma espécie de mala ou pertence. Satoru então, tomado pelo desespero para conseguir alguém para trabalhar na feira do dia seguinte, pede a ajuda desse estranho que acabara de ter acolhido. Esse homem depois se apresenta como Kashiba Ryou e aceita trabalho de bom grado. Mais tarde então, depois de trabalhar no evento que acaba sendo bem sucedido, Ryou revela que sua intenção ao deixar Nova York era de morrer ali na Terra do Sol Nascente.


A história depois continua girando em torno de Satoru e Ryou e vai mostrando a relação dos dois sendo construída bem aos poucos, um slow burn agradável. Por ser um BL, é possível deduzir de primeira que os dois protagonistas vão acabar em um relacionamento amoroso; porém, ZAKK não falha em deixar algo que é tão óbvio, interessante. Ela mostra como os dois vão se aproximando, ficando cada vez mais confortáveis na presença um do outro e se tornando, antes de qualquer outra coisa, grandes aliados. Ver duas pessoas do mesmo sexo se apaixonando não é apavorante, anormal e nem nada, podem ficar tranquilos. É apenas, literalmente, duas pessoas se apaixonando. Alguém que se diz gostar de romance já deve ter visto isso milhões de vezes e tenho certeza que Canis não vai decepcionar nesse quesito.

Aliás, a obra não foca muito na questão do preconceito ou coisa do tipo, algo que eu pessoalmente acho bom. Obviamente, entendo a importância de histórias que retratam a horrível realidade em que vivemos, porém também acredito que obras que não se concentram nisso são tão importantes quanto. A ficção está aí tanto para retratar e analisar a realidade quanto para fugirmos dela, não é? Nós precisamos de uma maior variedade de plots em histórias LGBTQ+ hoje em dia. Canis foca em outras coisas, outros aspectos e problemas dos personagens e para mim isso incrível.


Para não dizer que tudo é perfeito (até porque perfeito só Evangelion), em muitos momentos senti que a história se acelerava demais, principalmente no terceiro volume, e alguns personagens secundários parecem ter sido mal usados, deixados de lado quando parecia que poderiam ter algum papel mais importante. No entanto, como a história ainda não finalizou, pode ser que a autora corrija esse erro depois.

Além disso, a história não é apenas um romance. Intrigas com a máfia e política tem um papel vital em tudo o que ocorre. Esses temas são ainda mais abordados no spin-off da série The Speaker, que tem os considerados antagonistas dos primeiros volumes como o foco.

Acho que diferente da crença que muitos possuem sobre BLs, provavelmente criada pelos estigmas já mencionados anteriormente e por conta da forma que leitoras de BL são retratadas pela mídia, Canis não vai simplesmente mostrar dois caras que, depois de uma troca de olhares de meio segundo, já começam a fazer sexo igual animais. Na verdade, *SPOILER* eles nem vão tão longe assim. Mas claro, no fim das contas pode ser que Canis seja exatamente como você havia imaginado que poderia ser, mas pode ser que não também. Cabe a você ler e descobrir.

Você quer protagonistas bem trabalhados?


Em questão de construção personagem não há o que reclamar, ainda mais levando em conta a quantidade limitada de capítulos publicados. A autora tem todo o trabalho de mostrar o background de seus protagonistas com bastante detalhe. Ela ainda aproveita para mostrar o passado dos dois ao mesmo tempo, sendo possível assim entender com facilidade como a vivência tão diferente que ambos possuem fez diferença em quem eles são. Toda a informação que ela dá torna possível para o leitor entender quem de verdade são Ryou e Satoru, porque eles são como são e porque eles fazem o que fazem.

Também acho o desenvolvimento que ambos tiveram como personagem algo maravilhoso. Não é só o relacionamento que cresce na história, os dois também mudam, amadurecem e aprendem com seus erros; tudo bem na frente do leitor. Eles confrontam seus medos e o passado para assim poderem viver no presente como pessoas melhores e mais felizes.

Para dar um exemplo, um dos dilemas de Satoru é o fato de que bem no inicio de sua carreira ele criou um chapéu que foi extremamente aclamado no meio da moda, chegando a receber muito prestigio e até um prêmio. Porém, um tempo depois, as pessoas passaram a questionar o chapeleiro sobre qual seria sua próxima grande criação. A pressão de ter que criar algo que atendesse as altas expectativas dos outros fez com que Satoru travasse, se tornando incapaz de criar sua próxima obra prima. Ver ele enfrentar esse problema tão íntimo, mas que com certeza assola muitas pessoas por aí, chega a ser verdadeiramente inspirador.

ZAKK não erra ao mostrar a complexidade de seus protagonistas e impacto de tudo o que eles vivem durante a história.

A outra parte da série


Nesse spin-off, em publicação desde 2015, temos um clima totalmente contrário ao que vemos na história de Ryou e Satoru que é dramática, mas otimista. Aqui, o clima pesado já pode ser sentido desde os primeiros capítulos e vemos a história indo do drama para uma verdadeira tragédia.

A trama começa em um orfanato nos Estados Unidos em meados dos anos 1980. Os protagonistas são Tadanobu, Hal e Samuel, que dividem um quarto na instituição em que vivem e são tão unidos que consideram seu grupo uma família. Harold, apelidado de Hal, é atlético e extrovertido, um garoto brincalhão e corajoso que não pensa duas vezes antes de ajudar algum amigo; Samuel é um gênio, tanto na questão acadêmica como em relações interpessoais, sendo o cérebro do trio; por fim, Tadanobu (muitas vezes chamado apenas de Nobu) é um menino mais tímido que não se destaca muito, mas que segue seus amigos para qualquer aventura.


As coisas começam a acontecer quando Tadanobu acha um lápis que pertencia a uma garota do orfanato que desapareceu misteriosamente. Os três garotos, intrigados com esse sumiço, questionam a freira que toma conta da instituição e recebem respostas curtas, sem muita explicação e que despertam ainda mais dúvidas. Samuel então começa a analisar o caso mais a fundo e percebe que existia um padrão de acontecimentos que ocorriam na instituição: todas as crianças eram agrupadas em trio, sempre havendo uma que chamava menos atenção. As três sempre eram adotadas ao mesmo tempo e, quando iam embora, duas delas recebiam uma grande festa. Já a terceira, a criança sempre mais quieta, acabava partindo sem que os outros notassem, normalmente no meio da noite. Qual o motivo por trás disso?

Vou fazer uma comparação um tanto louca, mas alguns meses depois que finalizei todos os capítulos traduzidos de Canis, li Yakusoku no Neverland, mangá publicado na revista Shounen Jump desde 2016, e achei que no começo os dois tinham um ar muito similar. A estranheza do orfanato, as crianças percebendo que algo estava errado e se organizando para lutar contra isso... Obviamente, até por serem de demografias que não tem quase nada em comum, as duas histórias tomam caminhos completamente diferentes; no entanto, poder fazer essa comparação é algo por si só muito interessante. Mesmo tendo BLs cada vez mais variados, não é comum achar algum que possamos considerar parecido com um shounen (ainda mais um da Jump).

À esquerda, The Speaker e à direita, Yakusoku no Neverland. A questão da perda da confiança na única figura adulta responsável pelas crianças é mais um exemplo de algo presente em ambas as obras que me fez sentir esse ar de semelhança.

O spin-off ainda está em publicação e há muito para ver antes de dar qualquer veredito. Acho válido acrescentar ainda que nessa parte temos bastante violência, sangue e coisas que podem ser gatilhos para leitores mais sensíveis. Mas, vale ressaltar também que o jeito que esses recursos são usados é perfeitamente condizente com a história e, para mim, só a tornam mais rica e até realista. Os resultados dos abusos e traumas são mostrado com maestria pela autora, o que ao mesmo tempo choca e parte o coração de qualquer um lendo. Uma história bem pesada e com assuntos bem delicados, mas que não falha em deixar qualquer um impressionado.

ZAKK e sua incrível arte


Outro fator que acredito ser um diferencial em Canis é seu traço. Ao meu ver, muitas vezes tem um ar mais cartoonesco e o uso de quadros grandes com poucas falas dá um visual ainda mais diferenciado a obra. Closes nos rostos e foco nos olhos dos personagens também são bem comuns. Os cenários são desenhados de forma bem simples na maioria das vezes, mas eu acho que pelo fato da história ser tão centrada nos personagens e dar tanta importância a como eles se sentem, o cuidado que ZAKK tem ao desenhar os rostos e expressões acaba compensando qualquer coisa. Não vou mentir, amo o estilo dela do fundo do coração.

Por fim, é isso. Acredito não existir motivos para alguém simplesmente ignorar Canis por muito tempo (além da barreira linguística já que, infelizmente, não sei de nenhum lugar que esteja traduzindo o mangá para o português). ZAKK ainda é uma autora que tem muito a mostrar e tenho certeza que vai publicar obras cada vez mais incríveis no futuro. Então eu te pergunto, por que não a acompanhar desde agora, dando uma chance para essa incrível obra?

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