Shi ni Itaru Yamai - Até onde chega o desespero humano?
Hoje em dia é muito fácil chamar um mangá ou anime de psicológico, mas o que raios seria uma obra psicológica? Ficou estabelecido de maneira genérica e sem muito fundamento que mangás mais sérios e violentos ou com personagens psicopatas ou simplesmente muito inteligentes entrariam nesta definição, vide um Death Note da vida. E como eu não gosto desta adjetivação, então lhes indico um mangá que verdadeiramente pode receber o título de psicológico, Shi ni Itarua Yamai, o qual objetivamente trata de psicologia como objeto central do enredo, onde acompanhamos a busca de um jovem estudante de psicologia pela cura da pessoa amada toma pela mais intensa forma de desespero.
Shi ni Itaru Yamai é um mangá publicado de março a dezembro de 2009 na Young Animal, a mesma revista de Berserk e 3-gatsu no Lion, sendo, pois, uma publicação mais voltada para um publico jovem adulto (masculino), o que é chamado de seinen. Este mangá é de autoria de Hikari Asada e arte de Takahiro Seguchi. Shi ni Itaru Yamai é composto de dois volumes e 19 capítulos. A título de curiosidade, o título do mangá significa Doença Até a Morte. O motivo deste título eu vou explicar mais a frente, mas adianto que tem relação a um dos pioneiros do existencialismo.
Resumindo de forma bem básica, o mangá nos apresenta uma misteriosa história. Futaba Kazuma é um estudante de psicologia que busca a qualificação para poder exercer a psicologia clinicamente. Não tendo onde ficar na cidade e devido a contatos do seu pai, ele acaba sendo recebido em uma grande mansão, onde uma herdeira chamada Emiru, também jovem, vive com o seu mordomo. O curioso é que Futaba já havia esbarrado na garota no meio da cidade, enquanto ela tinha uma crise nervosa. A garota é bastante singular, muito pálida e com cabelos brancos, mas isso tem uma razão bem sinistra.
A medida que Futaba se aproxima de Emiru, ele verifica que ela sofre de uma moléstia de ordem psicológica severa e de causa desconhecida. O cabelo branco e a pele pálida são efeitos dessa doença, assim como uma temperatura mais baixa que o normal e um sistema imunológico fraco. A garota sofre de uma espécie de desespero extremo. Nenhum psicólogo ou médico conseguiu tratar a menina. Kazuma e Emiru desenvolvem de início uma estranha parceria, onde ele se compromete a tentar buscar a cura dela, mesmo sendo um mero estudante de psicologia. Mas não se mostra fácil descobrir a causa de seu desespero e tratá-la adequadamente. Além disso, ele acaba se envolvendo emocionalmente e fisicamente com ela.
Basicamente isso é Shi ni Itaru Yamai. Mas antes de adentrar no conteúdo do mangá, vou escrever um pouco sobre o seu tema principal, o desespero. Lembram que eu mencionei que o título do mangá "Doença Até a Morte" era importante? Pois bem, essa é uma referência direta ao livro O Desespero Humano, de Søren Kierkegaard, como ficou bem claro com as próprias citações dessa obra no começo do mangá. O título original, que é em dinamarquês, Sygdommen til Døden em dinamarquês, significa literalmente "A Doença até à Morte". O Desespero Humano é somente a tradução para o português.
Mas quem foi Søren Kierkegaard e qual a importância deste seu livro? Søren Kierkegaard (5 de maio de 1813 até 11 de novembro de 1855) foi um filósofo, teólogo, poeta, crítico social entre outras coisas, dinamarquês, e que é amplamente considerado um dos primeiros filósofos existencialistas. Escreveu textos sobre religião em geral, cristianismo, moral, psicologia e filosofia. A maior parte de sua obra aborda as questões do individualismo, dando prioridade à realidade humana e destacando a importância da escolha individual.
Para Kiergaard o Desespero é o que de pior pode acometer o ser humano, é a doença mais terrível da alma e que não tem escapatória a não ser pela fé. Nem a morte, para ou autor, é tão terrível quanto o desespero. Tanto é que ele chama o desespero de doença mortal. No livro ele tenta chegar em um significado e definição de desespero, apontando que ele é universal e pode se expressar em maior ou menor grau. Também afirma que somente os seres humanos podem se desesperar e que o cristão é a pessoa que mais conhece o desespero.
Todos estes aspectos mais profundos da obra de Søren Kierkegaard não são tratados no mangá de maneira direta, o mais importante é sabermos que Emiru foi acometida por um grau muito elevado dessa doença mortal, um desespero que está a levando a morte, fazendo jus ao título. Kierkegaard não menciona isso em seu livro, mas é já é bem aceito pela psicologia e pela medicina que males psicológicos podem afetar o organismo, causando efeitos somáticos no corpo. Várias reações corporais são comuns depois de experienciar um sofrimento psicológico extremo, esse fenômeno é chamado de somatização.
Originalmente o termo somatização foi criado por Wilhelm Stekel no início do Século XX, e que podia representar tanto a manifestação física com lesões orgânicas quanto sintomas físicos sem explicação médica, desde que gerados por conflitos psicológicos, como a depressão e ansiedade. (Mai, F. Somatization Disorder, a practical review. Canadian Journal of Psychiatry 2004; 49(10):652–662). Entre os sintomas mais comuns estão vômitos, dores de cabeça e no corpo, dificuldade de respirar, manchas e feridas na pele, fraqueza, taquicardia, cegueira, perda da voz, sangramentos, entre muitos outros.
Vi em uns comentários sobre esse mangá que ele não seria realista, pois seria exagerado que a Emiru ficasse com os cabelos brancos causados pelo seu mal psicológico. Discordo em parte, embora ainda não seja cientificamente comprovado, muitos especialistas já apontaram que o estresse pode sim causar o embranquecimento acelerado dos fios de cabelo, há ainda a possibilidade levantada de que o estresse da situação poderia ter gerado uma multidão de radicais livres em seus folículos capilares, que viajaram pela haste dos fios, destruindo o pigmento e produzindo um efeito branqueador . Embora possa parecer um exagero, é um exagero com pelo menos um certo respaldo científico.
Não é difícil de entendermos Emiru, ela possui um transtorno psicológico originado por motivos desconhecidos, tal transtorno está causando efeitos em seu corpo, os quais já foram mencionados acima. Então a missão de Futaba seria encontrar o que causou o desespero extremo de Emiru, sendo essa a única chance de curá-la. Mas o que um estudante sem nenhuma prática pode fazer para resolver essa situação? Ainda mais quando seus sentimentos se misturam com o dever profissional?
O mangá consegue manter um nível de suspense bastante convincente, na medida que os capítulos vão fluindo vamos descobrindo pistas e segredos sobre o passado de Emiru, jogando uma luz nos motivos que fizeram ela ficar no estado lastimável que se encontrava. E como boa parte dos problemas psicológicos, tudo tem um pé na infância. Ocorre que Futaba se mostra muitas vezes relutante e sem foco para descobrir o passado de Emiru, o que bota em risco sua missão.
O mangá é narrado pelo ponto de vista de Futaba, sendo um narrador no futuro. Então temos dois Futabas, um já psicólogo narrando os eventos passados e o personagem ativo no mangá. Interessante que essa obra logo de cara joga elementos que parecem que poderiam ter sido guardados para outros momentos. Bem no início vemos ele de frente para um túmulo que seria de Emiru, mas isso tem um motivo muito bom de acontecer nessa ordem, mostrando que não é uma revelação que estraga o bom andamento do mangá.
Tirando Futaba, temos mais quatro personagens apenas, o mordomo, uma aluna do Futaba no futuro, que é para quem ele conta a história da Emiru, uma professa da faculdade que o auxilia com o caso e a própria Emiru. Um elenco pequeno mas eficiente, o destaque de cada personagem foi dado no devido momento. Um grupo pequeno de personagens em uma obra curta, de apenas dois volumes, é a medida mais acertada para evitar inconsistência de enredo e personagens mau desenvolvidos. Neste quesito Shi ni Itarua Yamai está de parabéns.
Eu não posso contar qual o motivo do desespero extremo da Emiru, se não tiraria toda a graça de se ler o mangá, mas posso assegurar que é algo bastante criativo, mostrando um certo mal psicológico de uma maneira que nunca me havia ocorrido de ver na ficção, muito menos na vida real, mas que ao mesmo tempo se mostra extremamente factível de ocorrer se as condições se mostrarem favoráveis. De uma maneira ou de outra, o mangá é um bom exemplo para entrarmos em contato com vários tipos de moléstias psíquicas, como transtornos de identidade e paranoias em geral.
Uma coisa que me preocupou, embora tenha dado um forte tempero à trama, foi o fato de Futaba se envolver romanticamente com Emiru. E discordo do conselho dado pela professora de psicologia de Futaba no sentido de que seria bom tentar tratá-la mesmo envolvido afetivamente com ela. Embora eu não seja psicólogo, eu faço terapia e já li alguns livros de psicologia, então no meu entendimento um distanciamento entre o paciente e o terapeuta se faz necessário, pois no momento que há uma relação além da profissional, a ação do terapeuta já se mostra prejudicada, e isso fica evidente no caso de Futaba, o qual muitas vezes negligencia o seu objetivo em prol de uma satisfação romântica momentânea, muitas vezes puramente sexual.
E mesmo que não seja a mais realista demonstração de transtornos psíquicos e seus efeitos e tratamentos, e que haja diversos exageros e situações realmente difíceis de ocorrer na vida real, Shi ni Itaru Yamai é um bom estudo no campo da psicologia e realmente nos faz refletir sobre o significado da existência humana. Além de mostrar o que se fazer, e principalmente o que não fazer para ajudar alguém que passa por isso. Mas podemos dar um desconto ao jovem Futaba justamente por ele ser jovem e imaturo.
Para finalizar, tudo isso relatado acima é somado com um desenlace muito bom e criativo e uma arte que embora não chame a atenção quebra muito bem o galho. Shi ni Itaru Yamai é um mangá curto mas que possui bastante conteúdo de discussão e que realmente pode receber o título de "psicológico". Voltando um pouco para a minha crítica inicial à classificação de animes e mangás como "psicológicos" se dá justamente pela imprecisão do termo, é uma definição muito vaga, pois praticamente todos os mangas são psicológicos quando se tratam de pessoas humanas com sentimentos e vontades, e não é pelo fato de haver protagonistas inteligentes ou psicopatas, bem como críticas sociais "fodas" que podemos chamar algo de psicológico ou não. Shi ni Itarua Yamai é sobre pessoas comuns com problemas que podem acometer qualquer um. Então é isso, fica a minha dica e espero que gostem!