Mu-Kai. Por dentro do mundo da névoa.
Um roteiro intrincado de ficção científica em 33 páginas, um menino encontra uma garota em um mundo bizarro onde tudo está paralisado, exceto por eles, qual será o motivo? Isto resume Mu-Kai.
Mu-Kai, traduzido como mundo da névoa, é uma one-shot
publicada em 28 de outubro de 2014 na revista Evening para celebrar a
publicação do mangá Gunnm Mars Chronicle, de autoria de Yukito Kishiro, continuação
do aclamado clássico cyberpunk Gunn (Battle Angel Alita para quem preferir) e
de sua sequência Last Order, sendo Mu-kai, naturalmente, de autoria de Yukito
Kishiro.
Contudo, Mu-Kai não é uma obra original de Yukito
Kishiro, visto que este mangá foi baseado em uma estória de ficção-científica
do aclamado (pelo menos no Japão) autor de ficção-científica Tobi Hirotaka, Umi
no Yubi. Segundo informações contidas no próprio mangá ele é um autor que
escreve exclusivamente ficção científica assim como Yukito Kishiro, tendo
realizado sua estréia na literatura em 1982, mesmo não sendo um autor muito
prolífico ele possui até mesmo um certo destaque mundial, Yukito elogia seu
trabalho e descreve seu estilo como possuidor de muitas visões conseguindo
transitar entre o terrível e o belo.
Tobi ambém ganhou diversos prêmios da literatura
japonesa, como o Japan SF Taisho em 2005 e o Seiun Award em 2005 e 2010, que
são os principais prêmios da literatura de ficção científica no Japão. Portanto
Mu-Kai foi uma criação de dois grandes expoentes da ficção científica japonesa.
Mu-Kai embora inspirado na obra Umi no Yubi de Hirotaka
Tobi não é uma adaptação fiel, Yukito Kishiro apenas criou um enredo no qual
alguns conceitos abordados na referida obra continuasse em sua adaptação,
permitindo creditar Tobi pela ideia central.
Em breve resumo Mu-Kai é uma rápida estória de ficção
científica, onde Kenta, um garoto, perambula em um mundo onde tudo está fora do
lugar e paralisado, aviões, navios, prédios, tudo está misturado e petrificado,
formando vórtices, aparentemente somente Kenta pode se mexer. Além disso, as
pessoas também estão paralisadas e são intangíveis.
Neste contexto Kenta escuta um choro e busca a origem do
barulho e encontra numa casa uma menina chorando, se aproxima de forma a não
assustá-la, a menina se chama Mika, então, os dois, como os únicos que podem se
movimentar e interagir acabam por ficar juntos. No começo tudo parece uma
brincadeira, aparentemente possuem muito bem todos os recursos para sobreviverem
sozinho, e ambos acabam se tornando grande amigos.
Entretanto, após uma boa temporada de brincadeiras, ao
longo da narrativa eles encontram outro personagem, um professor que
aparentemente estava paralisado, mas apenas estava em uma velocidade muito
lenta (aparentemente neste mundo há uma distorção na questão do espaço-tempo),
com este encontro ambos ficam sabendo o que de fato ocorreu com o mundo real,
sendo que esta dimensão em que estão no mundo real é vista como um oceano cinza
que traga tudo que encosta transportando para tal dimensão, o "mundo da
névoa".
Diante destas informações acabam se lembrando do passado
e o deslumbre inicial se perde, Maki, por exemplo, sente saudade de casa e se
lembra que foi tragada para este tal "mundo da névoa", buscando a
todo custo sair desta dimensão, e é sabido também o que o as pessoas que estão
no mundo real estão fazendo em relação a este outro mundo, como tentativas de
resgatar quem fora tragado. Na metade final a narrativa se desenvolve na
questão de ambos buscarem um meio de deixar esse mundo e a resolução da relação
dos dois protagonistas, visto ter se desenvolvido uma forte amizade entre
ambos.
A estória é narrada do ponto de vista de Kenta, sendo que
é possível realizar algumas comparações, podendo considerar Kenta uma espécie
de Peter-Pan, não na questão de não envelhecer, embora eu ache bastante
plausível que naquela dimensão não ocorra envelhecimento. Mas bem, esse mundo,
tanto para Kenta como para Maki, notadamente na primeira parte da estória, é um
lugar para se divertirem onde não há regras nem adultos para dar ordens, o
paraíso de qualquer criança, a liberdade para fazerem o que quiserem na hora
que desejarem. Por exemplo, Kenta afirma que é bom não ter nenhum adulto para
regular o fato de entrar calçado em casa. Inclusive eles montam uma habitação
na palma de uma gigantesca estátua de Buda! Colocando uma barraca nela.
Embora Kenta num primeiro momento esnobe Maki, até lhe
chamando de "bebê-chorona", a convivência criou laços profundos entre
ambos, o que é reforçado pelo fato de terem somente um ao outro. Até mesmo
quando conseguiram saber de algo por meio do velho professor, a conversação
entre as crianças e ele levou muito tempo, visto o professor viver em câmera
lenta. Neste tempo livre eles podiam se divertir até não aguentarem mais, o que
é reforçado pelo fato de não existir dia nem noite e o tempo não passar, o que é
sugerido pelo fato de todos os relógios se encontrarem parados.
Outro ponto relevante é o egoísmo de Kenta ao ler o
bilhete na carta e descobrir que talvez o pai de Mika poderá resgatá-la,
exitando se entregaria ou não o referido bilhete, mas tal sentimento é
perfeitamente aceitável se analisado o contexto em que ambos os personagens se
encontravam, praticamente um só possuía o outro e vice-e-versa e a perspectiva
de ficar sozinho era aterradora, embora antes de conhecer Mika Kenta estava
aparentemente sossegado levando uma vida de lobo solitário, contudo as coisas
mudam quando são criados laços afetivos entre as pessoas.
Mu-kai além de parecer possuir um complexo enredo de
ficção científica condensado em poucas páginas é relativamente bem pautado no
desenvolvimento dos personagens sendo a "esperança" o tema central do
enredo, a esperança de sair daquela dimensão paralela e a esperança do
reencontro quando Mika é resgatada pelo seu pai e promete para Kenta que
viraria uma cientista para resgatá-lo. Bastante tocante o quadro final onde
Kenta afirma ser breve o momento que será resgatado e poderá reencontra sua
grande companheira Mika.
A narrativa gira preponderantemente em torno do
desenvolvimento dos personagens, não se esquecendo, claro, de abordar os aspectos
de ficção científica de uma forma bem elucidativa na medida do possível, sendo
notável a capacidade de Yukito de condensar tanta informação em apenas 33
páginas. Mas e o mais importante, a estória convenceu?
Primeiramente temos que levar em conta que são poucas
páginas de estória, pouco mais de trinta, a limitação em desenvolver algo muito
complexo é claramente perceptível, no entanto, para o que se propôs o mangá o
resultado final fora bastante convincente. Rapidamente Yukito conseguiu
construir um enredo envolvente, na medida do possível claro, apresentando de
maneira acertada algumas explicações "científicas" sobre o ocorrido,
usando o ardil de poder utilizar as memórias do velho professor.
Alguns conceitos pseudo-científicos abordados foram muito
interessantes. O certo choque oriundo da descoberta de linhas de tempo
paralelas por exemplo. A utilização de ondas sonoras como meio de criar
distúrbios no mundo da névoa e propiciar que as coisas que foram tragadas
pudessem regressar ao mundo real, interessante que a música utilizada para
resgatar Mika é uma canção que sua mãe cantava.
Mu-Kai poderia ter sido uma obra maior? Ou bastou como
one-shot. Bem, eu particularmente gostaria de poder ler mais um pouco sobre o
tal "Mundo da névoa", sobre a natureza do Oceano Cinza, explorar um
pouco mais detalhadamente as questões de espaço tempo alteradas e misturadas,
bem como, claro, um maior desenvolvimento da relação dos personagens. Mas tal
tipo de enredo é perigo e no caso de uma obra extensa poderia se perder
facilmente, mas isso nunca saberemos, visto até o momento não existir nenhuma
menção de que haverá mais algum material sobre tal obra, visto, como dito no
início, se apenas um "bônus" da publicação de um novo mangá.
Embora eu tenha enumerado esses pontos positivos, e a
one-shot tenha se fechado suficientemente "redonda" sem deixar
dúvidas preponderantes no ar dispensando uma continuação, se prestar bastante
atenção restaram algumas questões no ar, como o fato de os personagens estarem
em linhas de tempo diversas, poderão ambos serem resgatados e habitar na mesma
linha temporal do mundo real, ou o reencontro dos dois ficará para sempre
prejudicado, embora Kenta, em uma bonita cena, demonstre os esforços de Mika
para resgatá-lo por meio de sua coleção de garrafas que serviram como
"Portadoras" de mensagens do mundo real. Relembrando que o mangá
começa com tal coleção de garrafas e termina com ele, sendo uma espécie de
"ciclo".
O que dizer sobre a arte do mangá? trata-se de uma obra
de Yukito Kishiro autor de Gunnm, seus traços são muito bem acabados, as
expressões faciais são esteticamente bem apuradas, suas cenas de ações são
vívidas e fluídas, embora no mangá em questão não haja ação propriamente dita.
Também é notável o avanço da arte de Yukito Kishiro ao longo do tempo, sendo
perceptível o fato de que com o avanço dos anos seu traço abandonou aquela
"aura" de anos 90, o que me faz sentir um tanto nostálgico, visto eu
gostar bastante do traço de Gunnm Clássico.
Vi por aí críticas a esta obra pelo fato de que o autor
não teria se "esforçado" e faltou capricho nos desenhos, sendo que
por se uma one-shot se esperava mais apuro técnico e tal. Mas, segundo minha
análise, esta one-shot não foi um mangá de "porrada" e portanto
dispensa cenas elaboradas de ação. O character design ficou impecável se
comparado com Gunnm e menos carregado de detalhes, o que faz sentido se
observarmos que Mu-Kai é um conto de ficção científica protagonizado por crianças.
Ainda ouso dizer que
Apesar de possuir algumas lacunas como as aqui
apresentadas, Mu-Kai é uma obra válida, um rápido conto de ficção científica
que você não levará muito tempo pra ler, apenas alguns minutos, visto não
possuir nem 40 páginas. Então, boa leitura!