Metropia: alienação e dominação em uma Europa distópica


Hoje o Dissidência Pop irá analisar o filme Metropia, produzido em 2009 por uma equipe composta por suecos, dinamarqueses e noruegueses, tendo sido dirigido por Tarik Saleh. Embora poucas pessoas já o tenham assistido, posso garantir que aqueles que o fizeram lembram-se da arte excêntrica deste, com destaque para seus personagens, os quais foram animados com uma técnica bastante incomum. 


O filme se passa na Europa de 2024 em um futuro alternativo, que se encontra devastada devido a uma crise ocorrida na virada do século, a qual fez com que os recursos ficassem escassos e muitas empresas falissem. Devido a estes motivos, o conglomerado empresarial Trexx exerce uma influência enorme sobre a população europeia, fornecendo a maioria dos serviços utilizados por estes, chegando a conectar todos os metrôs do continente em um único, o qual é chamado de “O Metrô” (quanta criatividade!). Após a construção de tal obra, outros meios de transporte passaram a ser vistos negativamente pela sociedade.

No filme não foi explicitado o que exatamente devastou a Europa, mas há algumas dicas em certas cenas, como a da imagem, em que o senhor afirma que antigamente haviam 4 estações. Os indícios deixados pelos criadores me fazem crer que se tratou de uma catástrofe nuclear, mas não há como termos certeza disso

A animação de Metropia, como afirmado anteriormente, é diferente das convencionais, possuindo personagens cujos rostos são fotos animadas de pessoas reais fortemente editadas, gerando um resultado que lembra um pouco a South Park, embora as duas obras possuam propostas bem diferentes. Entretanto, deixou a desejar nas sequências com movimentos muito rápidos, tais como as cenas em que as personagens correm: elas parecem estar se movendo de uma maneira dura, que talvez pudesse ter sido feita para parecer mais suave.

Outro ponto notável é o esquema de cores do filme, ou ausência destas, gerando cenários escuros e sujos, fator que, combinado com a animação das personagens e com o contexto da história, gera um sentimento de incômodo nos expectadores, não chegando ao nível de um filme de terror, mas que definitivamente nos tira de nossa zona de conforto.

A trilha sonora não é tão variada, mas desempenha sua função no sentido de que combina com as situações nas quais as personagens se encontram. O destaque da vez vai para “Look at me”, música que simplesmente gruda na sua cabeça após ver o filme, e que o autor está ouvindo enquanto escreve:


Em suma, podemos afirmar que a arte de Metropia combina com o ambiente do filme, transmitindo ao expectador sentimentos de incômodo e monotonia, os quais ajudam a situá-lo no ambiente quase distópico da sociedade apresentada. Tais elementos são de suma importância em um filme, e é óbvio que Metropia fez esse trabalho muito bem.

O protagonista da estória é Roger Olafsson, um morador de Estocolmo que trabalha em um Call center e que se sente muito descontente com sua vida, começando a ver conspirações contra si em diversas situações, tais como acreditar que uma colega de trabalho o está espionando e que sua mulher o está traindo, além de ser o único que vai ao trabalho andando de bicicleta, pois acredita que há algo de errado com O Metrô.

Nosso herói, Roger Olafsson

Certo dia, Roger começa a ouvir uma voz em sua cabeça, mas acredita que se trata apenas de sua imaginação. No dia seguinte, ao procurar sua bicicleta para ir trabalhar, ele averigua que esta foi destruída por pessoas que não toleram tal meio de transporte. Sem outra opção, decide utilizar O Metrô. Lá, a voz se torna mais ativa, alegando ser a “voz interior de Roger” e que ele não pode negar seus pensamentos. Ela começa a discutir com ele a respeito de seus problemas e a fazer algumas sugestões, dentre elas a de trair sua mulher, mas nosso herói decide ignorar os conselhos desta. 

Cena em que Roger procura sua bicicleta para ir ao trabalho, mas a encontra destruída

Quando assistimos a esse filme, nos deparamos com uma sociedade com hábitos que consideramos no mínimo estranhos, tais como a intolerância que nosso herói enfrenta por usar uma bicicleta. Em um primeiro momento, achamos isso um absurdo, mas é interessante reparar no fato de que, durante toda a história humana, indivíduos que realizaram ações consideradas reprováveis pela sociedade foram submetidos a forças de coesão por parte desta, isto é, foram impelidos por outros a pararem de fazer o referido ato, algumas vezes até com uso de violência. Como exemplo, podemos citar a homossexualidade, que era vista como algo normal em algumas civilizações antigas, tornou-se algo a ser perseguido devido a ascensão de novas religiões durante várias décadas, e agora volta a ser algo visto como normal pela população (a maior parte pelo menos). Talvez alguma coisa que temos como normal agora pode ser visto como imoral e ofensivo em outras partes do mundo ou para pessoas de gerações futuras, assim como andar de bicicleta no mundo de Metropia.

Depois disso, ainda no Metrô, Roger avista a modelo Nina Swartzcruit, conhecida por ser a garota propaganda do shampoo Dangst (o qual pertence ao conglomerado Trexx), a quem ele admira por sua beleza, e. como estava estressado com sua vida, decide fazer algo de diferente, resolvendo segui-la, embora a voz se oponha a tal decisão. Nina percebe isto, e o confronta, desejando saber seus motivos, mas ele não consegue fornecer nenhuma razão para isto.

A garota então lhe pergunta se ele escuta uma voz em sua cabeça, que lhe ordena a fazer coisas, afirmação que Roger a princípio nega, temendo ser tido como louco, mas admite a verdade após Nina lhe revelar que o grupo Trexx está utilizando essas vozes para controlar a população da Europa. Cansado de seguir sua rotina, nosso herói aceita a proposta da garota de tentar destruir o sistema utilizado pelo conglomerado para manipular o povo e acabar com seus planos.


      Após a natureza da voz ser revelada, podemos traçar paralelos com o mundo real. Em um primeiro momento, acreditamos que somos donos de nossa vontade, e que não temos uma pessoa dentro de nossa cabeça tentando nos controlar, porém, temos que nos lembrar que a relação do indivíduo com a sociedade é mútua, isto é, uma pessoa influencia o meio onde vive tanto quanto é influenciada por este.


     Nós, seres humanos, querendo ou não, vivemos em sociedade. Desde que nascemos, somos coagidos a seguir tradições da comunidade em que vivemos, e normalmente desejamos obter conquistas que nos tornem notáveis para os outros indivíduos, além de nos sentirmos mal quando possuímos alguma característica que não é aceita pela sociedade. Nesse sentido, possuímos sim vozes dentro de nossas cabeças controlando nossas ações, mesmo que talvez não percebamos isso, as quais não representam nossa vontade como indivíduo, mas a vontade do que a sociedade deseja que nos tornemos, seja isso algo bom ou ruim.        

         É interessante perceber que Roger não aceitou os conselhos de seu dominador, mesmo com esse tentando fazê-lo pensar que eram seus próprios pensamentos. Podemos também relacionar esse fato com as “vozes da sociedade” que temos em nossa cabeça: todo indivíduo que convive no meio social sabe o que este meio deseja dele, isto é, possui tal voz em sua cabeça. Entretanto, nem todas as pessoas seguem a esta cegamente, elas apenas o fazem quando acreditam que o pensamento é delas próprias.

         Analisado este conceito, voltemos alguns quilômetros para a cena em que a bicicleta de Roger é destruída. A dominação do grupo Trexx foi tão eficiente que fez os próprios indivíduos se voltarem contra aquele que era diferente, de uma maneira que lembra a prisão descrita pelo filósofo Michel Foucalt em seu livro Surveiller et Punir: Naissance de la prison (Vigiar e Punir: o nascimento da prisão), a qual se baseia em uma estrutura conhecida como Pan-óptico, em que todos os prisioneiros estão sob o cuidado de um vigia, que se localiza em uma torre no centro da prisão construída de uma maneira que os vigiados não sabem se seu guarda os esta observando ou não, e isso gera temor nestes, que passam a se comportar como se estivessem sendo observados a todo instante – o objetivo final é se livrar do guarda, e deixar os próprios prisioneiros se vigiarem. Ao invés de medo, em Metropia os europeus são vigiados pelas suas vozes interiores, e em seguida por si mesmos, quando seus pensamentos já são o que seus dominadores desejam.

Representação do Pan-óptico descrito por Foucault

ATENÇÃO: os parágrafos a seguir contém spoilers, e podem estragar a experiência. Sugiro assistir o filme antes de continuar. Leia por sua conta e risco.

A proposta do filme foi muito boa, entretanto, senti que este fluiu rápido demais, principalmente na segunda metade, embora isto não chegue a torná-lo ruim. Outro ponto importante, que alguns podem considerar irrelevante, é a dependência de algumas coincidências para fazer a estória fluir, tais como Roger ter encontrado Nina justamente no local e data em que os maiores líderes mundiais estavam ou estas mesmas personalidades estarem presentes no exato momento em que ele detona a bomba que destruiu o sistema de vozes internas, sendo isto algo que talvez pudesse ter sido evitado.

 Entretanto, ainda com relação à estória, algo que sou obrigado a elogiar é o final, o qual simplesmente se encaixou perfeitamente com o “tom” do filme: após a destruição do sistema de vozes utilizado para controlar a população, nada mudou, o poder apenas passou de uma mão para outra, que não necessariamente fará o bem. Além disso, como sabemos, Nina simplesmente não se importava com Roger, e pretendia matá-lo junto com o sistema. Embora isso seja deprimente, representa a realidade: livrar a sociedade da opressão não é fácil, e quando um tirano é derrubado outra pessoa assume o comando, e, além disso, não se pode confiar abertamente em alguém que nem conhecemos. A maioria das obras traz finais felizes e idealizados, e é bom ver uma um pouco mais realista as vezes.

Na verdade, Nina pretendia apenas herdar o império de seu pai, um objetivo egoísta porém realista

Pois bem, este foi Metropia, um filme que, embora não seja perfeito, vale muito a pena ser assistido, pois mostra problemas presentes em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que nos oferece um estilo de animação diferente do que estamos acostumados, tudo isso em menos de uma hora e meia de filme. Se você ainda não assistiu, faça-o agora, e não se arrependerá, e se já o viu, veja-o de novo, pois é uma ótima experiência.



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