The Music of Marie: você gostaria de viver nessa Utopia?
Uma obra de ficção científica que aborda temas filosóficos e ainda conta com paisagens fantasiosas que prendem a atenção do leitor certamente possui a “cara” do Dissidência Pop. Isso torna curioso o fato de o mangá The Music of Marie (ou em japonês Marie no Kanaderu Ongaku) ainda não ter sido analisado no blog, mesmo possuindo as características citadas. Apesar de termos demorado muito para fazê-la, aqui está a análise desta maravilhosa produção.
O mangá é de autoria de Usumaru Furuya, o mesmo criador de La Croisade des Innocents, o qual já foi analisado aqui no blog. A obra foi publicada no Japão em 1999, contando com 17 capítulos distribuídos em 2 volumes, os quais podem ser facilmente lidos em menos de duas horas.
Antes de começar a falar da sinopse do mangá, é válido descrever o mundo proposto pelo autor, chamado Pirit, o qual é rico em detalhes, e mesmo assim deixa espaço para a imaginação do leitor trabalhar no que não é descrito. Acréscimos como esse enriquecem a obra, tornando a experiência ainda mais prazerosa.
Nesta realidade, a humanidade é vigiada por uma deusa mecânica chamada Marie (sim, a do título), a qual traz alegria e prosperidade para essa terra. Ela possui um grande culto, com templos dedicados a ela em todas as nações deste mundo.
Geograficamente, Pirit é dividida em diversas ilhas, e o povo de cada uma possui uma especialização: temos a ilha de Gil, onde predominam as oficinas mecânicas e também o palco de grande parte da trama, a ilha de Palo onde brotam ervas que conduzem efeitos afrodisíacos, e a terra de Nia, cujos habitantes vivem em uma ilha se forem homens e em outra se são mulheres, onde degustam de prazeres sexuais com seus pares. Os habitantes das duas ilhas se encontram apenas no meio do ano para tratar de “negócios”, na época em que nascem os bebês, que então são separados de acordo com seu sexo.
Temos ainda a ilha de Tad, chamada de terra da peregrinação, onde os habitantes das diversas regiões de Pirit se encontram uma vez por ano em um evento que dura 10 dias.
Além de propor uma realidade tão detalhada, o modo como informações sobre este mundo são expostas é também digno de elogios. Na maior parte dos casos, uma das personagens faz comentários que deixam os leitores conscientes de tais fatos sobre o lugar em que vivem, enquanto, ao fundo, há uma bela paisagem que normalmente ocupa metade da página, na qual há um cenário do lugar/fato descrito recheada de detalhes, a qual simplesmente faz com que os leitores se percam olhando para elas.
Em certas ocasiões, algumas revelações a respeito da trama também são feitas desta maneira, as quais por vezes deixam o leitor indeciso se prossegue a estória, a qual se torna cada vez mais intrigante, ou se faz uma pausa para apreciar as paisagens.
Pois bem, agora que já localizamos nossos leitores neste mundo fantástico, finalmente podemos começar a falar da estória de The Music of Marie.
Nos capítulos iniciais da obra, são introduzidos os dois personagens principais: o protagonista Kai e sua amiga de infância Pipi, a qual nutre sentimentos amorosos por este, ambos moradores de Gil, terras das oficinas. É válido ressaltar que a especialização de cada ilha é muito acentuada, em Gil, terra que mais temos o prazer de observar, praticamente todos os habitantes vivem em função das oficinas, seja extraindo matéria prima, projetando novos aparelhos, ou até mesmo tentando decifrar certas tecnologias deixadas por civilizações antigas.
Kai possui um dom muito especial: audição extremamente aguçada. Isso lhe permite encontrar reservatórios subterrâneos de água, além de minérios, o que lhe rendeu considerável fama, até mesmo em regiões distantes de onde vive. Entretanto, esta habilidade lhe permite saborear uma sensação ainda mais prazerosa: ouvir a Música de Marie, a qual não pode ser percebida por ouvidos normais. Isso o levou a admirar ainda mais a deusa, tornando-se obcecado para com esta. Além disso, ele possui duas estranhas marcas em suas mãos, cuja origem é explicada no decorrer da obra.
Pipi é uma moça considerada atraente por muitos, além de ser a filha do Senhor Gajiji, um inventor de renome, o qual interessa-se por criar réplicas mecânicas de animais, as quais habitam o jardim de Pipi.
Entretanto, apesar destes dotes, ela se esforça para fazer Kai se sentir atraído por ela, chegando até mesmo a pedir uma ambiciosa máquina de voar para seu pai, com o intuito de impressionar seu amado. Entretanto, as tentativas da jovem garota são infrutíferas devido à crescente obsessão de Kai para com a deusa Marie, a qual deixa a garota abalada, principalmente a cena da qual os leitores do mangá provavelmente jamais se esquecerão: aquela em que Pipi flagra Kai se masturbando enquanto admira Marie voando no céu estrelado.
Infelizmente, para prosseguir com a análise, é necessário entrar em spoilers, pois os acontecimentos que mais podem gerar discussão do mangá são também aqueles que, se revelados, com certeza estragarão a experiência. Os próximos parágrafos foram escritos tendo em mente que o leitor já leu a obra, e apenas trarão um breve resumo desta antes de iniciar a discussão. Se você ainda não o leu, recomendo fortemente que faça-o agora, pois irá satisfazê-lo muito mais do que este simples texto. Em seguida, volte para cá, finalize-o, e conte-nos sua opinião!
Certo dia, ao visitar a praia, Kai recupera o acesso a memórias perdidas referentes a como obteve seus poderes. Quando era criança, quase se afogou enquanto nadava, mas durante o incidente foi convocado por Marie e pelos Três Homens Sábios, guardiões da floresta que a orbita. Estes o chamavam de “O marcado” e lhe deram o dom de ouvir as vozes dos espíritos, além de tecerem comentários sobre um grande futuro para ele. Depois de lembrar-se do ocorrido, a atração de Kai por Marie aumenta ainda mais, chegando ao episódio previamente citado.
Enquanto tudo isso acontece, a ilha de Gil é mostrada para seu mais novo morador, Maru pelo personagem Totto, recurso utilizado para mostrá-la ao leitor. Somos apresentados aos templos de Marie onde ocorrem os cultos, e também ao subterrâneo, onde certas pessoas, conhecidas como “exploradores” tentam decifrar tecnologias antigas e fazê-las funcionarem novamente, porém nunca obtém sucesso.
Concomitantemente aos eventos anteriores, a ilha de Gil se prepara para o aniversário de Pipi. Outra tradição dos habitantes da ilha é que declarações de amor só podem ser feitas durante o aniversário das garotas, e, por este motivo, Pipi deseja impressionar Kai nesta data voando com uma máquina criada por seu pai, na esperança de que seu amor seja correspondido.
A data chega e vários rapazes se declaram para Pipi, incluindo um explorador que consegue utilizar parte da antiga tecnologia para criar uma Pipi robótica capaz de andar e falar, também com o objetivo de impressioná-la. Enquanto este rapaz e Pipi utilizam suas respectivas máquinas para tentar obter seus objetivos, Kai, através de sua poderosa audição, nota que a música de Marie mudou para algo caótico e violento, e em seguida escuta os circuitos do autômato e a estrutura da máquina de voar se quebrando.
Alguns dias depois uma parte dos habitantes de Gil vão para a ilha de Tad para encontrar os outros povos no evento anual previamente citado. Durante o evento, Kai conta para o pai Gule o que ocorreu durante o aniversário de Pipi, e este responde ao garoto que finalmente entendeu o papel de Marie: os homens antigos eram possuidores de grande tecnologia, mas viviam guerreando entre si – o surgimento de Marie e de seu culto foi criado para impedir que a humanidade ultrapasse certo nível tecnológico.
Depois de voltarem para casa, os moradores de Gil são surpreendidos por um dia fora do comum: todas as tecnologias antigas começam a funcionar, ao mesmo tempo em que ocorrem diversas brigas entre os habitantes da pacífica região, duas coisas igualmente surpreendentes.
Neste dia, Kai é capaz de ouvir diversas emoções que nunca tivera contato antes: raiva, preguiça, inveja, etc. além de ouvir todas as máquinas que nunca haviam operado antes funcionando. Entretanto, uma coisa estava faltando: A Música de Marie.
Quando nosso herói constata esse fato, sua primeira atitude é olhar para o céu, onde vê Marie quebrada. Sua primeira reação é entrar em pânico, e, ao olhar ao seu redor, percebe que o tempo parou para as outras pessoas, e que os Três Homens Sábios estão logo a seu lado.
Eles o guiam pelo corpo de Marie até sua cabeça, onde lhe mostram uma caixa de música, a qual é a responsável pela Música de Marie. A Kai é dada uma escolha: fazer o tempo fluir novamente sem ligar a caixa, ou reativá-la, fazendo com que tudo volte ao normal. Antes de tomar sua decisão, Kai pergunta a eles por que precisam de sua ajuda, e estes respondem que isso se deve ao fato de que foram os humanos que construíram Marie.
Indignado com a limitação imposta à humanidade, Kai decide não girar a chave da caixa, e então é submetido a visões de como o mundo seria caso Marie não existisse, o qual é muito parecido com o nosso. Ele vê guerras inúteis, fome e miséria, todos causados pelo egoísmo humano. Esta visão o comove, e ele decide girar a chave, fazendo com que tudo volte ao normal.
Neste ponto, o mangá nos traz um questionamento: será que a humanidade viveria melhor em um mundo em que fosse limitada e controlada, sem poder ultrapassar certo nível tecnológico e com suas emoções regidas por um mecanismo análogo à Música de Marie?
Fato é: nosso mundo possuí diversos problemas, cujas causas são simplesmente os próprios humanos, ou os mecanismos criados por estes. O egoísmo é algo inerente ao homem, e não só a ele, estando presente em diversos outros seres vivos, pois é algo essencial para a sobrevivência. Entretanto, na sociedade moderna, causa diversos problemas desnecessários. Se pudéssemos controlar os pensamentos das pessoas para torná-las pacíficas como na terra de Pirit, o mundo provavelmente viveria em paz. Entretanto, você, caro leitor, gostaria de viver em um mundo assim? Podemos aprofundar na questão ainda mais: ao manipular e limitar a população humana, estaríamos conferindo-lhe felicidade, entretanto, será que isso seria ético, mesmo roubando das gerações futuras a perspectiva do progresso e o livre arbítrio? Acredito que tais questionamentos não possuam respostas simples, mas convido o leitor a divagar sobre estes.
Temos ainda a questão da ciência e da tecnologia. Será que deveríamos impor limites para o que podemos estudar/descobrir, sejam eles por razões éticas, ou apenas para nos poupar? Essa discussão pode ainda ser levada para outro lado, que praticamente não foi tocado no mangá. Lembremos que os habitantes de Gil não conseguiam fazer os engenhos antigos funcionarem, e, se dependerem de Marie, nunca o farão, e permanecerão com sua ciência estagnada.
Em nosso mundo, a ciência ainda progride. Entretanto, a população em geral não possui conhecimento do que se estuda nas universidades, um dos motivos para isso é de fato a falta de divulgação científica, entretanto, devemos nos atentar também para o fato de que os temas analisados pelos pesquisadores são deveras complicados, exigindo anos de estudo sobre outros conceitos apenas para se ter uma noção básica do assunto, o que permite constatar que existe uma grande especialização no meio acadêmico. Isso se torna mais acentuado ainda quando se analisa o fato de que dois estudantes de doutorado muitas vezes desconhecem completamente o tema estudado um pelo outro.
O leitor deve estar se perguntando onde essa discussão irá parar, e a resposta para esta pergunta é a seguinte dúvida: será que algum dia, chegaremos a um nível de conhecimento em que será praticamente impossível se descobrir coisas novas, devido à enorme quantidade de conhecimento necessário para isso, a qual talvez esteja além dos limites do humano comum, deixando tal tarefa apenas para aqueles ditos gênios? Talvez nunca teremos resposta para essa pergunta, mas convido novamente aquele que lê este texto a divagar sobre.
Prosseguindo com a estória, após reativar Marie, Kai conta tudo o que ocorreu para Pipi, e diz que seu destino agora é se tornar um bispo em Tad. A garota recebe a notícia e fica muito triste, mas a situação piora ainda mais quando Kai lhe conta que teria feito a proposta a ela caso não tivesse recebido os sinais de Marie. Ao embarcar no navio, Kai pensa consigo mesmo que agora entendeu seu papel no mundo e seu amor por Marie desapareceu, e, após isso, se desintegra, virando pó.
Somos então levados 50 anos no futuro para ver uma Pipi já idosa conversando com o pai Gule em seu jardim. Ela se diz feliz por receber uma carta de Kai e, conforme a conversa flui, aponta para Gule a possibilidade de as marcas na mão de Kai em conjunto com sua primeira experiência na sala de adoração terem criado a imagem de Marie apenas em sua cabeça. O velho homem a questiona nesse ponto, lembrando-a de que a tecnologia destes nunca avança, e que vivem em um mundo totalmente pacífico, coisas que podem ser explicadas pela estória de Kai.
Após isso, nos é mostrada a carta de Kai na mão de Pipi: uma folha em branco. Vemos então Totto conversando com o pai Gule sobre o que realmente aconteceu no verão de quando Kai desapareceu no mar: após 15 dias, o corpo morto de Kai apareceu. Desde esse dia, Pipi continuou acreditando que ele estava vivo, e tinha súbitos desmaios quando seu pai tentava lhe contar a verdade. Entretanto, o pai Gule lembra Totto que, mesmo “morto”, Kai foi capaz de encontrar vários minérios, e afirma ainda que conversou com ele enquanto espectro, tendo descoberto que o garoto havia apenas perdido a forma física depois de cumprir seu papel. Em seguida eles vem o jardim de Pipi, moldado a partir da imagem do rosto de Kai, mostrando o grande amor da garota pelo jovem marcado.
O final nos traz uma dúvida: Kai existiu mesmo, e se sim, então tudo que ele presenciou em Marie foi verdade ou não? O mangá não nos confere esta resposta, entretanto, no decorrer da história, são fornecidos indícios leves de que Kai não é percebido pelas outras pessoas, uma vez que este conversa apenas com o pai Gule além de Pipi, e somente quando não há mais ninguém por perto. Podemos também ver algo curioso na imagem da sonhografia:
Tente encontrar Kai na imagem |
Este foi The Music of Marie, um mangá conhecido por poucos no ocidente, o que é simplesmente lamentável. A estória é envolvente, principalmente no segundo volume, quando somos apresentados à natureza de Marie, compensando o ritmo lento do primeiro, que pode desagradar alguns leitores. A arte é digna de elogios principalmente pelas paisagens, assemelhando-se a Hitoshi Tomizawa, autor de Milk Closet e ilustrador do mangá de Yume Nikki, ambos já analisados pelo blog. Mas acredito que o principal “charme” do mangá é como ele coloca o leitor pra pensar quando o final está chegando, gerando dúvidas filosóficas e também sobre o próprio universo criado na obra.