Barbara de Osamu Tesuka [CORRENTE DE REVIEWS 2016]


Hoje é um dia especial para o Dissidência Pop, já que o blog está participando pela primeira vez da Corrente de Reviews, um projeto realizado de forma anual pelo blog Anikenkai, que reúne diversos blogueiros, e neste ano youtubers também, para que cada um indique uma review a ser realizada pelo blog/canal sorteado. O blog Missão Ficção foi o responsável por indicar o mangá Barbara, de Osamu Tesuka para o Dissidência Pop. Antes de tudo, devo realizar um desabafo. Que indicação foi essa! Agradeço imensamente ao Missão Ficção por propiciar a possibilidade de ler Barbara e realizar esta review. Então, vamos a ela!

Primeiramente seus dados técnicos. Barbara é um mangá de autoria do pai dos mangás Osamu Tesuka. Barbara foi serializado de 25 de junho de 1973 até 10 de maio de 1974 na revista Big Comic, composto por dois volumes e quinze capítulos.

Osamu Tesuka se exibindo com parte do seu vastíssimo trabalho.


Osamu Tesuka é lembrado por suas obras voltadas ao público infantil, como Astro Boy e Kimba, o Leão Branco, contudo, fugindo desta fama, Barbara é um dos trabalhos de Tezuka mais adultos e sexualmente explícitos, e que demonstra com maestria a erudição e capacidade narrativa do pioneiro dos mangás. E só para constar, o título original de Barbara é Burabora, que foneticamente se pronuncia como Barbara.

E do que trata Barbara? O mangá segue a história de um escritor de sucesso, Yosuke Mikura, que possui uma legião de fãs, principalmente mulheres atraídas pelo seu jeito de galã. Entretanto, ele esconde do público uma realidade marcada por estranhas perversões sexuais, manifestadas em uma série da parafilias, como se envolver sexualmente com manequins e cadelas pensando ser mulheres. Tanto sua carreira como sua vida são marcadas por um certo grau de loucura, sendo difícil precisar o que é real e o que não é.

Exemplo dos desvarios sexuais de Mikura


A história começa com Mikura atravessando a estação de Shinjuku, quando acaba por encontrar uma bela garota bêbada que lhe rouba a atenção, Barbara é o seu nome. O que mais surpreende Mikura é o fato de Barbara ter uma erudição invejável por se capaz de citar passagens de diversos poetas de cabeça, em especial Verlaine. Barbara acaba sendo levada para a casa de Mikura, onde uma estranha relação de amizade, amor e ódio se inicia. Enquanto Mikura dá um lar para Barbara, ela acaba por ajudá-lo ao protegê-lo de suas alucinações sexuais, além de diversas outras situações, funcionando como uma espécie de anjo da guarda às avessas.

Quando a relação de Mikura e Barbara se estreita, ele começa a duvidar da real natureza de Barbara, a qual aparenta ser muito mais que apenas uma jovem delinquente bêbada e inconsequente. Cada vez mais Mikura desenvolve uma forte obsessão por Barbara, e por essa obsessão acaba entrando de cabeça em uma série de eventos surreais que envolvem mitologia grega, cultos pagãos, missas negras, vodoo, clubes de sadomasoquismo e etc. A partir de um ponto não se sabe mais o que é real e o que é delírio de um homem alucinado. Dentro deste contexto insano se desenvolve Barbara.

Barbara citando Verlaine, o seu poeta favorito.

Curioso o processo que levou Osamu Tesuka a se aventurar em escrever mangás para um público mais maduro, mesmo já possuindo a tempos a fama de ser um dos maiores expoentes dos mangás infantis, com clássicos imorredouros como Astro Boy. Nas décadas de sessenta e setenta Tesuka começou a perder um pouco de sua popularidade em detrimento da nova geração de mangakás que exploravam temáticas de ação mais violentas e com mais cenas de sexo. Tesuka, atento às mudanças do tempo, resolveu se adaptar, criando obras para um novo público de jovens adultos.

Nesse período de transição, criou clássicos como Black Jack, de 1973, que segue a história de um médico ilegal. Além dessas obras para um público mais jovem, Tesuka escreveu diversos mangás com conteúdo adulto explícito, o que demonstra sua capacidade de explorar todos os gêneros com a maestria de um verdadeiro gênio. Desta época e estilo se destacam, além de Barbara, os mangás Ayako, Swaolling the Earth e Ode to Kirihito.

Ayako, Swaolling the Earth e Ode to Kirihito respectivamente.


Barbara, sem sombra de dúvidas, é um dos trabalhos de Osamu Tesuka onde melhor é possível verificar todo o seu eruditismo. O autor possuía uma carga intelectual imensa, conseguindo transitar entre os mais diversos temas com uma extrema facilidade. Tesuka possuía um grande conhecimento sobre literatura mundial, diante da enxurrada de citações de autores famosos. Além de tudo, para ressaltar a capacidade artística de Tesuka, ressalta-se que ele era um hábil pianista, e que adorava ouvir música clássica enquanto trabalhava em seus mangás.

Muitos podem achar que os mangás são uma forma de arte inferior à literatura, e quem se dedica aos quadrinhos um artista menor. Osamu Tesuka veio para mostrar o quão errada esse premissa é, pois possuía uma bagagem cultural e artística muito superior a grande maioria dos escritores. Claramente ao ler Barbara é possível perceber o grande número de livros que Tesuka devia ter contato. E devo dizer ainda, e não apenas de livros de literatura e poesia, mas de livros técnicos de todas as áreas do conhecimento, sua pesquisa sobre bruxas e magia negra para compor Barbara foi fenomenal.

Como dizia Hemingway: "Um livro pronto é como um leão morto."

Mikura e Barbara se mostram como instrumentos usados por Osamu Tesuka para explorar o máximo a essência da criatividade artística, com todas suas insanidades e idiossincrasias em um mundo real e cruel. A obra foi um grande estudo de Tesuka sobre o sentido da arte e do que passa um artista durante e após o processo criativo, ou melhor, durante toda sua vida, podendo abordar livremente elementos que em uma obra mais amena e voltado para um público mais jovem não poderia. O conteúdo de Barbara é uma grande alegoria sobre ser um escritor.

Quando Barbara foi escrito, o Japão passava por sérias convulsões sociais, principalmente motivadas pela juventude universitária de viés de esquerda. Era um período no qual os universitários, e jovens em geral, se dedicavam vorazmente à leitura de clássicos da filosofia, política, sociologia e literatura. Barbara reflete este período diante do grande número de menções à autores famosos. Inclusive Tesuka não deixou de mencionar escritores de seu tempo, como seu amigo Sakyo komatsu, importante escritor de ficção científica japonês.

Outro exemplo da abundância de citações presentes em Barbara, desta vez do poeta francês Charles Baudelaire: "O amor é uma paixão pela prostituição."

Como eu já havia dito acima, um dos charmes de Barbara é justamente as citações de diversos romancistas e poetas, dentre eles Balzac, Verlaine, Baudelaire, Nietzche, Tolstoi, Pushkin. Além de autores japoneses de renome, como Kawabata e Yukio Mishima, que em 1970 praticou o suicídio ritual após uma tentativa de revolução frustrada, sendo um elemento político e literário que certamente influenciou Tesuka na composição de Barbara. Além disso, há menções de artistas de outras áreas da arte, como os pintores Picasso e Monet, e o compositor Berlioz.

Barbara teve influências artísticas desde a sua origem. O mote do enredo de Barbara foi inspirado pela ópera do século XIX Les Contes d"Hoffmann, de Jacques Offenbach. Não é novidade que mangás de Tesuka foram inspirados por uma fonte literária. O autor chegou a realizar adaptações de clássicos da literatura mundial, como Crime e Castigo de Fyodor Dostoiévski, já analisado aqui no blog, e Fausto, a magna opus do alemão Goethe. A referida ópera é baseada em três contos de E.T.A. Hoffman (1776-1822), um dos mais proeminentes autores fantásticos do romantismo alemão.

Citação de Nietzche.


Na ópera Hoffmann é um personagem e é justamente o herói, ele se aproxima de uma musa, a qual tenta fazê-lo esquecer de todos os seus amores, devotando seu amor somente à ela. Ao longo da ópera, Hoffman perde sua capacidade criativa e entra em um dilema existencial, assim com ocorreu com Mikura. Essa parte da peça é uma analogia sobre um dilema no qual a maioria dos artistas irão se deparar um dia, aceitar a fama e os compromissos sociais advindos dela, ou se manter afastado de tudo para defender seus próprio valores.

Assim como Olympia em Les Contes d''Hoffmann, Barbara é uma musa, filha de Mnemosine, uma titânide que segundo a mitologia grega, personificava a memória, e mãe das musas, filhas suas com Zeus. Cada musa representa uma arte em particular, por exemplo, Caliópe representa a poesia épica e Euterpe a música, eram entidades a quem era atribuida a capacidade de inspirar a criação artística ou científica.

Cartaz da Ópera Les Contes d''Hoffmann.

Barbara seria uma musa muito mais eficiente, ela podia inspirar tanto escritores como pintores, aparentemente não fazia restrições em relação à modalidade da arte. Para Mikura sua presença foi providencial, permitiu que criasse a sua obra-prima, pela qual se tornou famoso mundialmente. Entretanto Barbara era ambígua, assim como Mikura, os meios utilizados para ajudar e inspirar não eram os mais ortodoxos, bem como a imagem de uma bêbada toda esfarrapada não combina em nada com uma divindade helênica.

Curiosa a representação da mãe de Barbara no mangá. Mnemosyne foi retratada por Osamu Tesuka com a aparência da Vênus de Willendorf, uma estatueta de mais de 20.000 anos de idade que representa uma figura feminina. Até hoje não se sabe o significado e origem da imagem, nem qual era sua aplicação cultural e significado religioso. Presume-se que era uma espécie de amuleto sagrado de alguma divindade feminina que representa a fertilidade. Recurso interessante de Tesuka para representar uma deusa mãe procriadora.

Vênus de Willendorf e Mnemosyne (mãe de Barbara) respectivamente

Quando Mikura acaba por conhecer a mãe de Barbara, Mnemosyne, foi o ponto que ele começou a crer que ela poderia ser a musa de sua arte, que conviveu com milhares de artistas ao longo dos séculos. A impressão que Barbara causava em Mikura muda constantemente ao longo da leitura do mangá. Ela, além de musa, atuava como uma espécie de anjo da guara, salvando a vida dele inúmeras vezes, claro que sempre com métodos heterodoxos.

Se bem que esse ato de proteger a vida de Mikura se traduzisse no dever de musa, pois ela foi capaz de impedir que ele se tornasse um político e se casasse com a filha de algum homem poderoso, o que prejudicaria sua arte, pois não seria mais livre para criar. Curioso o método de Barbara para conseguir seu objetivo, matar o político que convidou Mikura, fazer um boneco de Vodoo. Esse foi o primeiro de um intenso contato com a magia negra mostrado no mangá.

Por dentro da conturbada mente de Mikura.

Outro recurso de mestre utilizado por Tesuka foi valer-se de exemplos retirados da própria arte para mostrar o inferno existencial vivido por Mikura, citados por ele mesmo em suas divagações. Primeiramente, enquanto cogitava suicidar-se perguntou-se o que Yukio Mishima e Kawabata pensaram antes de tirarem a própria vida. Será que eles pensaram no que ganhariam e  no que perderiam com isso?

Outro Exemplo é de quando escutava a Symphonie Fantasique de Berlioz, mencionando o contexto no qual ela fora composto. Berlioz havia se separado da mulher que amava, caiu em desespero, tornou-se um viciado em drogas, e depois desta decadência conseguiu compor uma de suas obras mais geniais. Mikura também passou por esse processo ao se distanciar de Barbara, o que propiciou que escrevesse seu último grande livro. Muitos artistas apenas criam suas melhores obras em contextos infelizes, há a teoria de que a felicidade não inspira a arte no mesmo nível da tristeza.

Mikura possui muitas similaridades com o compositor francês Berlioz.

Outro aspecto de Barbara trabalhado por Osamu Tesuka foi o de bruxa, por muito tempo Mikura a viu como sendo uma feiticeira, não sem motivos claro, ela praticava vodoo! Pela metade do mangá, ele entra em uma direção voltada fortemente para a magia negra, inclusive havendo várias páginas expositivas sobre a história da bruxaria ao longo dos séculos, bem como uma detalhada descrição de alguns rituais macabros, como a missa negra.

Há uma versão sobre esse inserção massiva de elementos do ocultismo na metade final de Barbara. Na época de publicação do mangá, muitos leitores estavam achando o enredo muito subjetivo, mostrando um mundo muito particular e restrito para aqueles que fossem familiarizados com a arte, principalmente a literatura. Em resposta a este tipo de crítica, Osamu Tesuka resolveu introduzir elementos do ocultismo na história, já que esta era uma temática que estava na moda na época. Mesmo assim, o espírito único de Barbara não se perdeu.

Barbara possui diversas mulheres dentro de si, podendo passar de uma hippie bêbada para uma feiticeira experiente em pouquíssimo tempo.

Diante de tantas visões sobre Barbara, difícil definir qual sua natureza, ela se encaixa para cada momento. Barbara é musa, bruxa, anjo da guarda, bêbada, infantil, femme fatale, etc. Todas essas imagens sobre ela estão certas, Barbara é um símbolo da criação artística, com todas suas nuances e variações. Não só a personagem, mas o mangá inteiro pode ser considerado uma grande alegoria sobre a arte, essa visão encontra respaldo segundo as palavras do próprio Tesuka: "Talvez Barbara possa ser visto como uma alegoria da arte." (Osamu Tesuka Complete Works MT-146. 1982, p. 232)

Também há no mangá uma crítica ácida em relação aos artistas que se envolvem com política ou alguma forma de ativismo, tanto como candidatos padrão de alguma democracia, como rebeldes contra um governo autoritário. No mangá, o artista deve estar isento destas influências, caso contrário perderia originalidade, sendo levado por interesses mundanos, mesmo que nobres, pois a arte deve ser algo à parte do mundo real, uma instância de beleza e contemplação. Essa abordagem é mostrada no caso do escritor exilado Russalka, que perdeu sua "Barbara" por militar contra o governo de seu país.

Crítica direta aos artistas que resolvem se meter com política e dinheiro.

Não somente a arte recebeu críticas de Tesuka em Barbara, a política também, mais especificamente o conceito de Estado Contemporâneo, o qual em comparação a uma seita satânica, ele é muito mais demoníaco. Nem a mídia de massa escapou das ácidas alfinetadas de Tesuka, quando através de Mikura afirma que a maioria da literatura do Século XX é algo totalmente descartável, por ser algo simplesmente comercial.

Quanto a Mikura, ele é um personagem igualmente ambíguo, cultuado e adorado pelos seus amigos e fãs em seu auge, se deleita nas mais abjetas perversões sexuais sem se dar conta do que estava fazendo. Tal grau de loucura leva a uma interpretação diversa do mangá, a qual Mikura seria totalmente louco, padecendo de esquizofrenia profunda, podendo, assim, tudo ter sido fruto de sua mente doente.

Exemplo da despreocupada e boêmia personalidade de Barbara.

Entretanto, mesmo que assim fosse, não muda o caráter geral da obra, o qual é interpretativo por si mesmo, cabendo ao leitor pegar o sentido oculto da obra, que é servir como uma elaborada e muito complexa alegoria sobre o processo artístico. Mikura vai do sucesso moderado ao extremo do fracasso e decadência. A sua decadência justamente é marcada pelo abandono de Barbara. Quando a musa vai embora, o artista perde sua inspiração. Qualquer artista pode passar por essa situação.

Conforme o próprio Mikura: "Exatamente, minha vida e meu trabalho vão dar em nada. Mas talvez a arte seja assim. Eventualmente ela apodrece... E é esquecida." O artista trabalha em sua obra durante a sua vida e irremediavelmente acabará morrendo. A arte não é muito diferente, ela pode ser preservada, adorada e reverenciada, mas um dia, ela perecerá, seja por um incêndio, um terremoto, ou pela simples ação do tempo. Quantas peças de arte maravilhosas já foram destruídas assim, sem que ninguém mais conseguisse contemplá-las?

Exemplo da ampla pesquisa sobre bruxaria realizada por Osamu Tesuka para compor Barbara.

Esse é justamente um dos temas do último capítulo, o qual destoa do restante, por ser algo mais expositivo sobre a situação da arte. E o mais surpreendente de tudo, quem faz essa exposição é ninguém menos que "Reiji" Matsumoto, uma clara homenagem a outro dos grandes nomes do mangá, Leiji Matsumoto, autor de clássicos como Captain Harlock e Galaxy Express 999. Ele afirma que estamos em um estado no qual não conseguimos mais identificar o que é arte, os padrões foram drasticamente alterados.

Muitas peças de arte são simplesmente usadas como lenha, ou apenas jogadas no lixo. Tesuka ainda completa com uma crítica severamente mordaz, no sentido de afirmar que o valor da arte atualmente não está representado pela qualidade do material, ou pela emoção ou paixão que ela causa, mas sim pelo lugar onde ela é exposta ou pelo público pela qual ela é voltado. Assim deixamos de perceber o que é arte no nosso dia a dia, rejeitamos um pintor de rua pelo simples fato de seu trabalho não ser exposto em uma grande galeria.

Para Mikura, Barbara é um misto de atração e repulsa.

E as críticas de Tesuka não param por ai. O estado de conservação das obras de arte históricas do japão era algo que o preocupava imensamente. Primeiramente, ele de modo quase ufanista, ressalta que as obras do Japão são muito mais antigas e numerosas do que as de Roma, por exemplo, para depois lamentar o estado delas, sendo que o governo, pelo menos na época, não realizava nenhuma medida eficiente para conservá-las.

Em um contexto geral, Barbara é sem sombra de dúvidas, uma obra complexa, cheia de nuances ocultas. Difícil interpretar ao certo o que Tesuka quis dizer com ela. Barbara é um emaranhado de ideias, conceitos, citações de artistas famosos e de crítica à arte. Essa crítica à arte moderna, faz sentido, pelo menos se analisar conjuntamente com o que motivou Tesuka a escrever obras mais maduras, a perda de sua popularidade em relação a novos mangakás que entregavam um material mais apelativo. Barbara pode ter sido um muito bem elaborado e sutil manifesto de Tesuka contra a indústria artística.

Barbara, mesmo na sarjeta, se destaca da massa amorfa que representa a coletividade.

Assim, creio que talvez Tesuka tentou passar o conceito de que cada artista possui a sua musa, a sua "Barbara" particular, e ela não precisa ser uma hippie bêbada e desleixada, ela pode tomar a formar que melhor se adaptar ao seu admirador. Ela é o espírito criativo que o impulsiona a arte, sem ela, o artista não é nada, é incapaz de criar, como ocorreu com Mikura ao ser abandonado definitivamente por Barbara. Mikura teve o crédito de mesmo abandonado pela musa, buscá-la com todas as suas forças, o que permitiu ainda um vislumbre dela, e uma retomada, mesmo temporária, de sua obra criativa, culminando na sua magna opus, Barbara. Ela foi sua inspiração e tema para sua obra final,o livro que culmina na amálgama entre realidade e fantasia contada pelo mangá.

Alguns podem se perguntar o motivo do mangá ser tão sexualmente explícito ao ponto de barbáries e sodomias sexuais serem elementos comuns em seu enredo, caso a intenção fosse apenas realizar uma alegoria da arte. Penso que o objetivo de Tesuka pode ter sido demonstrar que a arte, bem como o processo criativo, alcançam os aspectos mais sombrios da psique humana, sendo principalmente representados pelos desvios sexuais de Mikura. A violência e o sexo explícito do mangá não é o seu objetivo principal, é meramente um elemento para um enredo muito mais complexo e profundo.

Barbara possui uma incrível capacidade de transformação para atingir seus objetivos. De mendiga mal educada e bêbada à uma sedutora, fina e bem educada mulher.

Outro ponto do mangá pode ser bastante criticado atualmente, a questão da violência contra as mulheres. Frequentemente Mikura bateu em Barbara quando estava bravo com ela, não medindo forças na hora de lhe desferir uns sopapos. Já estando neste ponto, mais um objeto de crítica é a caracterização racial de Tesuka, principalmente dos negros, pois seria ofensivo desenhar um negro com suas características faciais de modo proeminente. Ultimamente, em vários mangás de tesuka há a ressalva quanto estas questões, ressaltando a importância de se considerar a época em que ele vivia, bem como seu estilo de arte, que é caricaturado por natureza, inspirado nos quadrinhos e desenhos ocidentais, principalmente da Disney, que em sua época de ouro fazia o mesmo tipo de desenho.

Como já estou falando sobre aspectos da arte do mangá Barbara, adentrarei um pouco mais nesta questão. O traço de Tesuka é inconfundível por mesclar elementos próprios com características oriundas dos quadrinhos ocidentais. Sua arte é notadamente infantilizada, já que a maioria de seus mangás é voltado para as crianças. Entretanto, nos seus mangás mais maduros, Tesuka modificou um pouco seu estilo, seus personagens se tornam mais "humanizados" por assim dizer, as feições são mais sérias e mais adultas.

Exemplo da conturbada relação de Mikura e Barbara. Destaque para uma das muitas pancadas sofridas pela nossa heroína.

Para quem não está acostumado em ler mangás antigos, é bem provável que estranhe a arte de Barbara, que difere de qualquer coisa que é feita atualmente. Naquela época não havia tanto compromisso com questões de perspectiva e fidelidade dos traços corporais. Mesmo Barbara possuindo um traço mais maduro, muitos dos elementos clássicos de Tesuka ainda estão presentes, como caretas e alguns personagens secundários que lembram vagamente seu traço usado em mangás infanto-juvenis. Já  Leiji Matsumoto, que deu as caras no final do mangá, foi desenhado em seu próprio estilo, uma bela homenagem de Tesuka!

Tesuka conseguiu usar os quadros com maestria e foi o pioneiro em conseguir passar nos mangás a sensação de movimento, com o uso de linhas e outros elementos que dão a sensação de velocidade. Inovou também na maneira de usar os quadros, não se contentando em apenas utilizá-los da maneira habitual. Utilizou personagens saindo de suas dimensões ou em formas geométricas curiosas. Um exemplo de um belo uso dos quadros é na cena abaixo, onde em uma perseguição boa parte dela foi representada apenas mostrando os pés dos personagens. A retração dos elementos sobrenaturais também merece destaque, seus desenhos no que envolve o ocultismo são belíssimos e aterradores.

Destaque para o interessante enquadramento dos pés dos personagens durante a perseguição.

Barbara se mostra uma obra completa, tanto no que diz respeito à arte visual como ao conteúdo narrativo. Talvez ela pôde ainda ser mais completa na cabeça do homem que concebeu a saga, o único capaz de interpretar com precisão todos os elementos apresentados ao longo da trama. Não é um mangá fácil de apreciar, seu conteúdo é pesado e subjetivo, nada recomendável para aqueles que gostam apenas de enredos fluídos e lineares. Barbara é uma viagem surreal pelo mundo da arte, uma grande alegoria dos demônios que assolam a cabeça dos artistas.

Difícil chegar em uma conclusão sobre Barbara, eu fiquei fascinado com sua leitura, mas admito minha falha em compreendê-lo por completo, creio que ninguém além de Tesuka é capaz disto. Sinto que haveriam muitas mais coisas para escrever, barbara é uma fonte fecunda para especulações e interpretações. A única conclusão que chego sobre Barbara é que não é uma obra para ser apreciada por qualquer um. Finalizo minha Review citando Herman Hesse, nem só a Barbara tem direito de citar escritores não é? Portanto, Barbara é "Só para os raros, só para os loucos!" (O Lobo da Estepe).

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Quero finalizar agradecendo ao blog Aninenkai pela oportunidade de participar da Corrente de Reviews 2016. É uma honra participar desta iniciativa que há anos movimenta positivamente os blogs que falam sobre animes e mangás. Além, claro, de possibilitar a interação entre os blogs participantes e ser importante instrumento para difusão de conteúdo para os leitores e apreciadores.

Agora vamos ao que interessa, a próxima review da corrente estará nas mãos do One4All, que possui um canal no Youtube e um blog participante da rede Tsusuku. Então não sei se o One4All postará a review por meio de vídeo ou texto no blog, então terei que aguardar até lá. Como não posso fugir de meus princípios de sempre indicar animes e mangás que sejam um tanto desconhecidos no Dissidência Pop, eu indiquei o anime CLAMP School Detectives para ele, espero que tenha gostado da indicação e aproveitado este anime, mesmo que fuja um pouco do estilo do canal, mas essa é a graça da corrente, não é? Fiquemos no aguardo!

Vocês podem acompanhar a Corrente de Reviews 2016 e ter acesso facilmente a todos os textos/vídeos publicados até agora clicando neste link: CORRENTE DE REVIEWS 2016.

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