Kaiyuu no Mori - Que segredos você guarda na sua floresta?


Todos os seres humanos possuem segredos que não querem compartilhar com ninguém, e que melhor lugar para guardá-los do que nas profundezas de uma floresta? Não necessariamente em uma floresta física, mas também nas profundezas da mente humana. Kaiyuu no Mori é um mangá que apresenta um conjunto de histórias curtas que exploram esses sentimentos escondidos, como a culpa e o fascínio pelo proibido. Alguns deses segredos são condenados pela sociedade e outros são um tanto mais sombrios e misteriosos.

Kaiyuu no Mori, também chamado de The Migratory Forest, que pode ser traduzido como A Floresta Migratória, é um mangá de autoria de Yaku Haibara, uma mangaká promissora, com bastante representatividade em círculos de Doujins. Seu mangá mais famoso é Tokage, que por sinal eu já analisei no Dissidência Pop. Justamente foi por causa de ter uma primeira experiência positiva com a autora que me motivou ler Kaiyuu no Mori, e não me arrependi nada disso.


Este mangá foi publicado de 06 de novembro de 2008 até 06 de novembro de 2009, totalizando 7 capítulos. Foi serializado na revista Manga Erotics F, famosa publicação voltada ao público seinen, que serializou vários trabalhos de autores renomados, como Inio Asano, Usamaru Furuya, Hiroaki Samura, Shintaro Kago, Jiro Matsumoto e Mohiro Kitoh.

Kaiyuu no Mori é uma coletânea de 7 estórias curtas, sendo que cada capítulo pode se lido individualmente e não possui grandes conexões com os demais, a não ser um ou outro personagem que aparece em mais de um capítulo, e quando há este tipo de aparição não é de grande importância  para a história e nem força o leitor a ter que ler os outros capítulos para entender. Claro que é totalmente recomendável que se leia o mangá na ordem certa, a fim de ter uma experiência mais completa do que a autoria quis passar com este mangá.


A autora, Yaku Haibara, tentou com este mangá criar uma rede de pequenos contos que abordassem a temática do segredo, utilizando-se para isso do símbolo da floresta. Qual o melhor lugar para esconder algo que não se quer que os outros saibam do que nas profundezas de uma floresta? Partindo desta premissa ela desenvolveu Kaiyuu no Mori. Mas a temática da floresta não é apenas metafórica, uma vez ou outra a floresta é um símbolo fisicamente presente.

O que pode acontecer em um simples passeio entre um aglomerado de árvores? Ou que pode ser escondida nela? Ou o que um bolo do tipo floresta negra pode representar para um casal a muito separado? Não é à toa que o subtítulo de Kaiyuu no Mori é justamente "Uma coleção de caminhadas". Portanto, o mangá é basicamente isso, um conjunto de diversas imersões que os personagens realizam em suas florestas emocionais.


Kaiyuu no Mori não é um mangá simpático, na verdade é um mangá bastante intenso e chocante. A autora não pensou duas vezes em explorar o que há de mais obscuro na psique humana. Intensões pedófilas, romances proibidos, vinganças rancorosas ou ainda fetiches estranhos são alguns exemplos do que se pode encontrar em Kaiyuu no Mori. Mas não pensem que o mangá é visualmente pesado. Pelo contrário, a autora conseguiu alcançar um meio termo entre o chocante e o natural. O que pode espantar um ou outro leitor é justamente o conteúdo abordado e não a forma pela qual ele foi retratado no papel.

Esse mangá é um retrato fiel das emoções e dramas mais profundos dos personagens, somos levados a entendê-los ao termos que compartilhar os segredos que eles possuem. Nada é tão simples, todos os eventos ocorrem por alguma causa mais profunda. Ao lado dessa eficiente capacidade narrativa da autora, destaca-se o seu traço, o qual é muito bonito e detalhado. Não foge do que habitualmente se vê em mangás, mas percebe-se um apruro no design dos personagens e demais detalhes dos cenários, conferindo um conjunto agradabilíssimo.


Bem, então falarei brevemente sobre cada uma das one-shots presentes neste volume. O primeiro capítulo Mirage, miragem em português, é de cara o mais polêmico desta coletânea. A autora começou pegando pesado, desde a primeira página, para já mostrar para o que veio. Mirage pega em uma questão extremamente delicada e repleta de polêmicas, a pedofilia. Logo de plano já percebemos em que direção essa história curta enveredá.

O protagonista, Satoshi, acaba tendo que realizar uma visita à sua vó no interior, depois de 10 anos sem visitá-la. Ocorre que um certo acontecimento do passado voltou à tona com toda a força. Quando era um jovem estudante de 25 anos ele teve que cuidar de uma prima sua, Miyo, que na época contava com apenas 4 anos de idade. Por um infortúnio, ao passear num bosque, a menina acaba se urinando. Sem saber o que fazer, Satoshi a leva para a casa dela, só que nenhum parente estava em casa, então ele resolve ajudá-la dando um banho nela.


Acontece que o Satoshi, muito nervoso, deixa escapar que "prefere garotinhas". O mangá não deixa claro que Satoshi molestou ou não a menina. Talvez ele tenha acariciado-a ou algo do gênero, o que se confirma pelo sofrimento psicológico do homem apenas com a mera possibilidade de reencontrar a garota 10 anos depois. Ele até mesmo sonha com o ocorrido, de uma maneira nada agradável.

Claramente ele não se orgulha nem um pouco do que fez. Mas o mangá deixa tudo isso vago. Não se sabe se foi o único ato e pedofilia de Satoshi, ou se ele já abusou de outras meninas. Esse não é o foco desta história. O objetivo é justamente fazer Satoshi ter que revirar um evento marcante que ele havia escondido nas florestas da sua consciência. Na época ele pediu para a menininha guardar "este pequeno segredo", e não sabia se ela ainda se lembrava do ocorrido ou se tinha contado para alguém.


Para a surpresa de Satoshi, a menina se apresenta uma colegial nada ingênua (talvez uma influência do abuso sofrido?), que aprecia brincar, ou melhor, torturar, Satoshi com a lembrança daquele "pequeno segredo". Ela até mesmo afirma não recear nenhum ato libidinoso dele, em virtude dele preferir "menininhas". O que fica claro é que o ocorrido há 10 anos atrás sempre voltará para atormentar a consciência de Satoshi.

Mirage, a história que abre esta coletânea, inova por nos apresentar um ponto de vista nada usual. Não é comum que tenhamos um protagonista que possua tendências pedófilas. bem como, a autora foi corajosa por abordar um assunto bastante polêmico. É ainda mais inovador no sentido de não demonizar o Satoshi pelo o que ele tenha feito, mas mostrar o que ele sente pelo ocorrido, e que de fato ele é humano. Não que a autora tenha colocado em panos quentes o seu abuso cometido, mas  julgá-lo não foi o seu objetivo, mas sim "adentrar" na floresta de sua consciência.


A segunda história de Kaiyuu no Mori se chama A Grave for a Gold Fish. Não é algo tão polêmico como Mirage, mas mesmo assim possui seus pontos altos. A história se divide em dois personagens principais que se encontram em uma floresta, um menino que precisa enterrar seu peixinho dourado que morreu e uma mulher que precisa enterrar o seu "passado", mais especificamente depois de terminar com seu namorado após uma briga em que ela saiu bastante ferida.

Essa história se desenvolve de uma forma até um pouco humorada, quando menino e a mulher acabam se encontrando por acaso na floresta, cada qual com o seu próprio objetivo. Ela acaba obrigando o rapaz a ajudá-la a cavar um buraco para enterrar um grande e pesado saco. Naturalmente o moleque fica desesperado, pensando se tratar de um corpo, cogitando até mesmo a possibilidade de acabar sendo enterrado junto. Entretanto, o enterro é simbólico, das lembranças que ela possui de um longo relacionamento.


A medida que a pequena história se desenvolve, ambos vão conhecendo um pouco um ao outro. Tanto a moça que quer começar uma nova vida, quanto o garoto que sente um grande remorso por ter descuidado do peixe dourado e deixado ele morrer. Uma estranha relação se forma, mesmo que os dois muito provavelmente nunca mais se encontrariam. Foi um encontro na floresta que marcou as vidas de ambos.

Agora vamos falar um pouco do terceiro capítulo de Kaiyuu no Mori, que se chama Water, ou água em português. Neste capítulo temos como protagonista Azu, uma típica garota do colegial. Ela possui uma grande amiga chamado Shiro. Como este capítulo é narrado pelo ponto de vista de Azu, sabemos que ela admira muito Shiro, que sai com vários garotos mais velhos e aparenta ser bastante independente, enquanto Azu é tímida e tranquila em seus relacionamentos.


O ponto de virada se dá justamente quando elas acabam se beijando enquanto cabulavam uma cerimônia no colégio. Para Shiro não foi nada demais, apenas esta testando seu batom com essência de menta, sem possuir quaisquer segundas intenções. Azu também pensou assim, entretanto, ela ficou fascinada pelas lábidos de Shiro, os quais pareciam feitos de água. A própria Azu fez uma paralelo de como a fascinação pelos lábios de Shiro era semelhante a entrar nas profundezas obscuras de uma floresta.

Com o passar do tempo, essa fixação fica muito forte. Azu chega a se sentir fortemente enciumada quando Shiro continua a sair com vários garotos. Ela até mesmo procura um batom igual com o que foi beijada para tentar repetir o ocorrido, com medo que a sensação daquele beijo suma no coração da floresta. Shiro é totalmente alheia a este desejo intenso de Azu. O mangá também não força a criação de nenhuma espécie de romance.


O foco de Water é justamente descrever a monomania que Azu desenvolve pelos lábios de Shiro, e como isso afeta a sua vida. Como no restante de Kaiyuu no Mori, a intenção da autora é justamente descrever estas situações como segredos ou desejos que podem ser comparados com uma profunda e frondosa floresta. Desejos e emoções reprimidas. Azu precisa descobrir como viver com este desejo, se o tenta colocar para fora ou escondê-lo na floresta.

O quarto capítulo se chama Behind Glass. Como o primeiro capítulo, este é um tanto polêmico, por explorar uma espécie de fetiche bastante bizarro, embora o protagonista não seja nenhuma espécie de criminoso, seus hábitos são estranhos, muito estranhos. Takaoka é o nome do protagonista, um promissor executivo, que é frequentemente assediado pelas suas colegas de trabalho, por ser misterioso e solitário. Ocorre que Takaoka tem outros interesses além de mulheres.


Takaoka possui sua própria "floresta" em seu apartamento. Ele próprio diz que precisa retornar todos os dias para o seu "aconchego". Em resumo, ele possui um serpentário em casa. Ou seja, ele cria cobras. Até ai tudo bem, cobras são animais de estimação exóticos, mas o problema é que elas não servem só como bichos de estimação... Bem... Ele tem outros interesses com elas, algo mais "sensual".

A questão é que Takaoka não suporta o "calor" das pessoas. Ele até tenta se relacionar com uma garota do trabalho, mas não obtém resultados satisfatórios. Ele só encontra conforto e prazer enquanto está entrelaçado com uma serpente fria. Bom, Takaoka possui gostos peculiares não é? Neste caso, penso que a autora tentou passar uma visão de floresta como algo que atrai, uma vontade forte. No caso, Takaoka precisa do contato com cobras para se sentir "completo."


O quinto capítulo se chama Black Forest, ou Floresta Negra. E não, não faz referência à famosa floresta alemã. E sim, faz referência ao famoso bolo de origem alemã, o qual leva chocolate, chantili e cerejas. Como eu disse no começo deste artigo, todas as formas de floresta são tratadas em Kaiyuu no Mori, até mesmo as mais doces. Mas não é sobre culinária este capítulo. Ou melhor, é sobre culinária, mas principalmente sobre uma doce vingança.

Black Forest é sobre uma professora de culinária, especialmente alemã. No passado ela morou na Alemanha, quando namorava um cara. Ele resolve terminar com ela para não vê-la sofrer mais, já que o casal sempre brigava. Ele vai embora justamente no dia de seu aniversário, deixando um bolo floresta negra intocado, que acabou indo para o lixo. O curioso desta história é que ela descobre que uma de suas alunas é justamente a esposa do cara que a abandonou!


O interessante é que a professa não nutre um grande rancor pelo antigo companheiro, apenas um amargo sentimento de incompreensão pelo término repentino da relação. Ela atualmente é bem resolvida com sua carreira e vida. Só que, com o aparecimento desta fatídica aluna, surge o desejo de provocar seu antigo companheiro, não de uma forma maldosa ou algo do gênero. Ela busca apenas dar uma doce lição para ele. Esse foi o capítulo mais tranquilo do mangá, mas não o menos interessante.

O penúltimo capítulo de Kaiyuu no Mori é Boat Phantom. Esse é um capítulo complicado, com uma interpretação um pouco mais dificultosa. O protagonista é um professor universitário Kouchirou. o título faz referência à fantasmas vingativos de mortos em naufrágios que tentam fazer a todo custo os vivos se unirem a eles nas águas profundas.


Ocorre que o fantasma de Kouchirou não é de uma pessoa morta, mas sim de uma "quase-morta". Ele se lembra com pesar de uma ocasião de seu passado, quando sua noiva e atual esposa caiu do barco em que estavam. Kouchirou foi incapaz de ajudá-la e isso quase lhe custou a vida. Muitas décadas depois, esse "pecado" ainda o atormenta, afinal de contas o fantasma de uma memória ruim é mais atormentador que um de verdade.

E por último tempo temos Fatal Migration. Esse é um título curioso, pois migração fatal faz referência a um acontecimento que pode ocorrer com peixes migratórios quando estes acabam se dirigindo para um lugar inadequado, como baías, rios e etc, o que acaba os matando. Seria basicamente um erro de direção no "GPS" animal deles. Mas do que fala Fatal Migration?


Temos novamente uma personagem que já apareceu lá atrás, a menina abusada do primeiro capítulo! Desta vez ela aparece somente como uma jovem colegial que mantém um relacionamento tórrido e proibido com seu professor. Isso não é algo de todo incomum, mas o que Fatal Migration traz de relevante? A menina está prestes a se formar e o professor a assumir uma vaga em uma universidade em Tokyo. Ambos precisam seguir suas vidas, mas eles querem continuar juntos. Como se proceder numa situação destas?

Este é um capítulo delicado, sobre como seguir em frente depois de viver uma relação amorosa que além de proibida sempre esteve fadada a terminar de uma hora para outra. Creio que o paralelo que a autora quis fazer com a migração fatal reside justamente no medo que suas escolhas possam significar a perda de algo bom ao invés de uma conquista de algo positivo. Entretanto, querendo ou não é necessário seguir em frente.


Por fim, chegamos ao final da análise individual dos capítulos presentes em Kayuu no Mori. Ao final do mangá, percebe-se que ele foi eficiente em criar uma intricada seria de histórias interessantes e com uma interessante mensagem a dar. Sofrimentos, traumas, fetiches, pecados do passado, tudo esteve presente nestes sete capítulos. A autora foi feliz em criar uma "floresta" nos quais todos esses segredos são escondidos em suas profundezas.

Kaiyuu no Mori é uma leitura recomendada para todos aqueles que gostam de um mangá com uma boa sequência de histórias. Além disso ele ganha pontos por ser curtinho, é apenas um volume afinal das contas. Sendo facilmente lido em pouco tempo. Ele pode ser chocante, isto é verdade, diante de certos conteúdos polêmicos abordados. Mas mesmo assim, ele merece uma chance pela abordagem distinta que toma em relação a estes assuntos. Enfim, é isso espero que tenham apreciado e até uma próxima.


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