Ashen Victor - Motorball com uma pegada noir.


Quase todo mundo sabe que Battle Angel Alita é uma franquia que ganhou um novo gás em 2019 com lançamento do filme live action que adaptou parte da história do mangá, e que mostrou que mangás/animes podem sim receber boas adaptações com atores reais. Mas tem uma coisa que quase ninguém sabe sobre a franquia. O seu autor, Yukito Kishiro, logo após o término do mangá clássico (1995), e um tanto infeliz com o término precipitado do mangá, criou um spin-off da série, Hai-Sha, mais conhecido pelo seu nome ocidental Ashen Victor, sobre o esporte mortal da franquia, o Motorball, mas sem nenhum personagem da série principal e que se passa anos antes. O diferencial dessa obra é a sua abordagem mais séria e principalmente sua arte, que com grandes contrastes lembra muito a arte de Frank Millar, autor de Sin City. E é sobre esse curioso acréscimo a série que resolvi escrever um pouco.

Ashen Victor foi publicado na revista Ultra Jump de 1995 até 1996, mais ou menos um ano depois do fim do mangá de Battle Angel Alita (lembrando que o nome de verdade do mangá é Gunnm, mas Battle Angel Alita, utilizado nos EUA, foi o que pegou internacionalmente). Como Yukito Kishiro foi forçado a interromper o mangá de Battle Angel Alita por problemas pessoais, retornou com a continuação apenas em 2001, com o Battle Angel Alita: Last Order, inclusive realizando uma retificação do final do mangá clássico, justamente para se adequar com o que ele tinha em mente como continuação. Em 2014 Last Order encerrou-se e logo em seguida Yukito emendou a publicação de Battle Angel Alita: Mars Chronicle, que perdura até hoje.

Alita com o seu corpo especial para Motorball.

Ashen Victor também não foi o único spin-off da franquia, já que em períodos esporádicos entre 1996 e 2007, Yukito lançou algumas histórias paralelas de Battle Angel Alita, chamado Gaiden, ou Another Stories em inglês. Mas enquanto estas histórias envolvem Alita e outros personagens existentes na franquia, bem como o seu traço corresponde ao mangá, Ashen Victor é totalmente à parte, tanto em termos de narrativa como arte. Eu poderia dizer que Ashen Victor é justamente uma tentativa de Yukito em criar uma trama sombria com muitos elementos noir, tanto é que esse mangá não é comparado com os trabalhos de Frank Miller à toa.

E outro diferencial de Ashen Victor se dá por ele cobrir um elemento que aparece em um dos arcos mais famosos e queridos por todos os fãs de Battle Angel Alita, o Motorball. E é possível gostar de Battle Angel Alita e não ter curtido o arco do Motorball? Afinal de contas, quem não gostaria de um esporte mortal que envolve corridas e lutas em uma atmosfera cyberpunk totalmente alucinada? Somado a isto está um dos adversários mais icônicos da franquia, e o qual a Alita respeita mais, o poderoso Jashugan.

Corpo para Motorball do filme live action.

Mas como é apenas um arco, Alita apenas passa um tempo jogando o esporte, apenas uma fase de amadurecimento, depois disso ela "pendura as chuteiras" e busca outro rumo na vida, e assim o Motorball é completamente esquecido na trama. Mas por ser um arco famoso, inclusive apareceu no live action, com o intuito claro para chamar já de cara a atenção de todos para o filme, já que esse arco ocorreria depois do restante de eventos que foram adaptados. Inclusive há também uma animação em 3D de 3 minutos do ano 2000 onde mostra Alita competindo no Motorball.

É curioso que Ashen Victor não mostra exatamente o Motorball praticado por Alita, como a história se passa alguns anos antes, o próprio esporte era um tanto diferente. Na época de Alita, o Motorball consistia basicamente em uma corrida em uma pista circular onde depois de um número específico de voltas, o competidor que estiver segurando uma espécie de bola ganha ao atravessar a linha de chegada. Mas não é uma mera corrida, é um esporte mortal, a maioria dos competidores possuem conhecimentos de artes marciais e corpos especiais para corridas repletos de elementos utilizados para o combate, como serras e espinhos. Armas não são permitidas, mas estes aprimoramentos corporais sim.

Snev e seu rival Dragunov.

Em suma, você pode impedir seu adversário de ganhar ou roubar a bola dele simplesmente o destruindo ou ferindo gravemente. Por serem os participantes ciborgues completos, a morte não é algo comum, pois sobrando o cérebro é simples reconstruir o corpo. Nesse cenário, Alita, que já era uma guerreira nata, se destaca. Não dá para esquecer de dizer que os expectadores do esporte vibram com as corridas, e quanto mais destruição, acidentes e lutas, melhor e mais divertido. Não raro quem estiver assistindo é pego na confusão e acaba sendo destroçado.

O objetivo político do Motortball é simples, embora Ashen Victor não se aprofunde nisso, nem se tem espaço para esse tipo de informação em suas poucas páginas (pouco mais de 120), a informação retirada da série principal é simples. Obedecendo a velha e imorredoura política do pão e circo, assim como a população romana era contida de se revoltar com a realização de espetáculos de gladiadores e outros eventos sangrentos, a população da Cidade da Sucata (onde se passa a trama principal), tem o seu furor e sede por violência contidos com a realização de esportes sangrentos como o Motorball.

Mudança do que o expectador deseja ver no Motorball.

E é justamente nesse ponto que o Motorball de Ashen Victor se difere tanto do de Alita. Na época de Ashen Victor o esporte era mais uma corrida do que um embate de gladiadores. Os participantes eram corredores e não artistas marciais. Tanto é que os corpos ciborgues nem eram equipados com armas. Contudo, gradualmente o esporte foi direcionado a uma direção mais sangrenta devido a plateia demonstrar um interesse mórbido de ver acidentes graves e brigas na pista, o resultado da corrida acabou ficando em segundo plano, enquanto os expectadores comentavam os resultados das brigas e acidentes por muito mais tempo. As equipes de Motorball não demoraram para perceber os potenciais dos novos rumos do Motorball.

E o protagonista de Ashen Victor possui uma certa relevância para essa mudança de paradigmas do que seja o Motorball. Assim, depois desta introdução ao esporte, vamos adentrar um pouco no enredo de Ashen Victor. O protagonista, chamado Snev, é um jovem e talentoso jogador do Motorball, mas que nunca foi capaz de ganhar uma corrida desde que começou a correr para a equipe Spandau, uma vez que ele bateu em todas as suas corridas sem terminar nenhuma. Curiosamente, nunca sofria danos sérios no cérebro, o que permitiu que corresse corrida após corrida, além de te lhe valido o apelido Crash King, algo como o "Rei das Batidas".

Uma das poucas cenas visualmente pesadas de Ashen Victor.

Mesmo sendo muito veloz e talentoso, por não conseguir ganhar nenhuma corrida, Snev foi desligado do time Spandau. Diante desse futuro incerto, a única pessoa que acredita em Snev é a prostituta Berreta, a qual afirma que ele irá voltar cedo ou tarde para as arenas de Motorball. Só que nem Snev acredita nele mesmo, na verdade ele ficou totalmente traumatizado com um acidente seis meses antes, quando uma pessoa invadiu a pista, por livre e espontânea loucura, e acabou sendo atropelado pelo Snev, que não conseguiu frear nem desviar do sujeito. Como ele possuía corpo humano, virou patê. Tal sujeito ficou conhecido como The Marathon Man, por estar vestido como um maratonista.

Esse acidente foi muito peculiar, não só pela estranheza mas como pelas suas repercussões na mente de Snev. O Homem Maratona acaba sempre aparecendo na cabeça de Snev como uma personificação dos seus desejos de auto-destruição, sugerindo continuamente que Snev colida novamente na pista. E como a previsão de Beretta estava certa, Snev é chamado novamente por ter ganhado uma legião de fãs de seus acidentes. Devido a isso, ele é forçado a bater, não sendo relevante que ganhe ou não as corridas. E é justamente nesse ponto que a mudança de paradigma do Motorball, o qual passa de um esporte de corrida para um de luta e violência.

Snev e sua amiga Beretta.

Mas o enredo de Ashen Victor não se resume a isso, há ainda toda uma intriga de corrupção envolvendo sua amiga Beretta e a equipe Spandau no que concerne o uso de drogas para aumentar ou diminuir performance e assassinato de pessoas próximas à Snev. Além disso, outros personagens importantes são Dragunov, o rival de Snev na equipe Spandau, que nutre um ódio pelo talento dele e que usa drogas para acelerar seu metabolismo, e Lorna, amiga de Beretta e também prostituta, que exerce um papel importante para ajudar Snev a resolver todo o esquema de corrupção do time Spandau.

Só que Ashen Victor é muito diferente de Battle Angel Alita, poucas coisas acontecem de maneira clara, a maior parte do desenrolar da trama se dá de maneira subjetiva com insinuações feitas pela roteiro. Por isso é até difícil definir se Ashen Victor é bom ou ruim. Acho que ele é diferente, essa é a melhor forma de tentar chegar próximo do que seja Ashen Victor. Também não esperem muita ação e violência desse pequeno mangá, quase não há cenas de Motorball sendo praticado. Ainda há cenas na pista, mas praticamente não ocorre nenhuma batalha ou corrida memorável. Mas até que dá para entender isso, são só 4 capítulos, se for colocar cenas detalhadas de uma corrida quase não haveria espaço para o resto do enredo.

Marathon Man, a figura que atormenta os sonhos de Snev.

E ainda por ser uma obra tão curta, uma publicação um pouco maior daria para desenvolver um pouco mais a mente perturbada de Snev e a motivação dos vilões, assim como resolver o problema das coincidências que surgem nesse mangá tão curto para resolver as pontas do enredo. Nesse sentido, fica clara a impressão que se a história fosse expandida, teríamos um mangá bem mais conciso e interessante, sendo que ainda por cima, teríamos um pouco mais de ação, o que ficou faltando. Mas devo lembrar que cenas de ação não combinam tanto com o traço empregado em Ashen Victor, umas vez que seus personagens são por muitas vezes apenas sombras, com os seus rostos quase indistintos em um universo de altos contrastes preto/branco.

Mas se entendermos Ashen Victor como um complemento da série principal, ele funciona muito muito melhor do que fosse uma one-shot isolada, já que possui um enredo interessante e uma pegada bem distinta, um tanto noir, lembrando obras como Sin City. Além disse ele está mais para um drama criminal do que um mangá de aventura. Tudo isso mascara um pouco o vários problemas que já mencionei acima. Assim, leia Ashen Victor se quiserem um panorama mais expandido do universo de Battle Angel Alita e principalmente do Motorball, um dos esportes mais violentos e emocionantes criados pela ficção.

Um vislumbre dos fantasmas da mente do protagonista de Ashen Victor.

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