Rainbow: "bandido bom é bandido morto" ou sobre o que a história nos ensina
A princípio Rainbow: Nisha Rokubō no Shichinin é apresentado ao público como um anime sobre jovens delinquentes presos em um reformatório. Com 26 episódios, o anime produzido pelo estúdio Madhouse, deixa explícito, pela sua premissa, que traz consigo questões sociais sobre crime e punição a serem discutidas. Mas, para além disso, a trama do anime é situada em 1955, ou seja, dez anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial e dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. E, ao retratar o espírito dessa época, Rainbow se torna um verdadeiro documento histórico, que "atualiza" animes clássicos que abordaram o período como Ashita no Joe e Hadashi no Gen.
Nesse texto abordarei inicialmente um pouco sobre o primeiro aspecto, a questão da delinquência, trazendo algumas reflexões da sociologia do crime e, em seguida, as articularei com a história do Japão e o entrelaçamento entre História e Sociologia.
Crime, punição e sociedade: os cidadãos de bem vs. o "lixo"
As cenas iniciais do anime mostram nossos seis protagonistas encapuzados sendo transportados num ônibus comum. O burburinho causado pela entrada deles no ônibus e o desprezo que até uma criança tem com um dos detidos é simbólico de como a sociedade trata os que desviaram das normas sociais. Segundo um dos fundadores da Sociologia, o francês Émile Durkheim, o crime é um fato social normal e tem um caráter útil à sociedade porque ele cria solidariedade entre as pessoas [1]. "Como assim?", você deve estar se perguntando. Pois bem vamos lá.
O crime em si não existe, para Durkheim, pois cada sociedade define, a partir de seus valores, o que é um crime. Logo, o que é para uma sociedade, pode não ser para outras, e vice-versa. Essa definição de crime cria um oposto complementar: a norma, tanto penal quanto moral. Assim, a sociedade passa a ser divida entre os que cumprem a norma e os que não cumprem, isto é, os "bons cidadãos" e os "criminosos". Sempre que há um crime, a parcela da população que não cometeu o crime tende a se solidarizar com a vítima por esta ter sido violada, mas também com as demais pessoas e consigo mesmas por que elas podem ser vítimas potenciais dos mesmos acontecimentos.
Em uma das primeiras cenas do anime, já vemos como a sociedade tenta se diferenciar dos assim chamados "bandidos" |
O crime em si não existe, para Durkheim, pois cada sociedade define, a partir de seus valores, o que é um crime. Logo, o que é para uma sociedade, pode não ser para outras, e vice-versa. Essa definição de crime cria um oposto complementar: a norma, tanto penal quanto moral. Assim, a sociedade passa a ser divida entre os que cumprem a norma e os que não cumprem, isto é, os "bons cidadãos" e os "criminosos". Sempre que há um crime, a parcela da população que não cometeu o crime tende a se solidarizar com a vítima por esta ter sido violada, mas também com as demais pessoas e consigo mesmas por que elas podem ser vítimas potenciais dos mesmos acontecimentos.
Por oposição, o criminoso é rechaçado. O interessante, sociologicamente falando, é que essa empatia coletiva e a excomunhão do criminoso como um bode expiatório que encarna o mal da sociedade só funcionam exatamente porque existe uma definição prévia de crime da qual as pessoas querem se distanciar, afirma Durkheim. O crime marca a fronteira do bem do mal; toda vez que essa fronteira é ultrapassada, a sociedade lembra da existência dessa linha e pode ponderar sobre o certo e o errado.
O filósofo francês Michel Foucault, anos mais tarde, diria que essa linha separa também o normal do anormal e que as prisões servem para que não vejamos o sofrimento do criminoso (do qual poderíamos nos compadecer). Já o criminólogo italiano Dario Melossi afirma que essa instituição funciona através de uma dialética com a ideia de "escória", uma vez que "o cárcere é para a 'escória' e a 'escória' é definida pela existência do cárcere" [2], ou seja: através de uma lógica circular, quem vai para a prisão é a "escória" da sociedade e a prisão serve exatamente para abrigar essa "escória". Coincidentemente, um termo similar, "lixo", é repetidamente usado por vários personagens que se deparam com nossos protagonistas e até por eles próprios por vezes.
Esse termo, se usarmos a teoria da rotulação, reforça e ajuda a manter essa realidade. Segundo seus autores, uma vez que alguém recebe um marcador tal qual "ladrão", essa pessoa passa a acreditar nisso ao ponto de se descaracterizar de seus outros atributos e se conformar a este. Além disso, o resto da sociedade cria uma repulsa tal com as pessoas assim rotuladas que o estigma resultante dificulta a reinserção social. Podemos ver isso, por exemplo, no fato de que as pessoas geralmente tem receio em contratar um ex-presidiário. Além da célebre frase dos Racionais MC's em "Homem na Estrada", "Viveu na detenção, ninguém confia não", é o que mostram investigações sobre o assunto [3].
No anime, uma das pessoas que mais os rotulam e os descaracterizam em sua humanidade é Ishihara, um dos agentes carcerários da prisão. Ishihara personifica um certo mal e é uma figura retratada meio caricaturalmente como demoníaca. Particularmente não gostei dessa representação porque, além de ser simplista em termos narrativos por tirar as nuances e complexidades de uma personalidade real, ela torna os atos de Ishihara como ações de alguém que é mau só pelo simples fato de ser.
Eduardo particularmente tem uma frase significativa na música ao falar de "funcionários selecionados e adestrados para ver adolescente como lixo não reciclável". É com essa ideologia que Ishihara atua, pois é assim que lhe foi ensinado que alguém desempenhando seu papel deve agir. Afinal, quando ele faz o que faz, ele também é legitimado por parte da população que vê o "delinquente" como um lixo. Já que há uma definição social de crime, como Durkheim apontou, quem o cometeu é passível de certas punições para "restaurar" a moral da sociedade. É isso que Ishihara pensa estar fazendo e, por isso, declara repetidamente que os jovens são lixos e um perigo para a sociedade. Afinal, a sociedade também acredita nisso. Atualizando as teorias de Durkheim e Foucault, o criminólogo escocês David Garland discute precisamente como funciona esse processo de legitimidade em um contexto histórico que, principalmente depois dos anos 70, vem sendo de recrudescimento penal no mundo.
Conforme a trama se desenrola, descobrimos motivos um pouco mais pessoais de Ishihara para ser sádico. De qualquer forma, essa razão (não vou dar spoiler) só "justifica" suas agressões contra Rokurouta Sakuragi (apelidado de "Anchan"). Porém, Ishihara é agressivo não só com ele, mas com os demais. E, embora ele os maltrate muitas vezes para afetar Sakuragi, já antes dos meninos terem contato com ele, em uma das primeiras cenas do anime, Ishihara os agride. Seu comportamento poderia ser melhor entendido pelo contexto institucional de poder em que ele está, conforme demonstrou o famoso experimento de Stanford. Neste, em uma simulação exatamente em uma prisão, pessoas comuns assumiram os papeis de guardas e prisioneiros. Rapidamente o experimento gerou abuso de poder dos guardas com os prisioneiros. Esse experimento inclusive demonstra a desindividualização sofrida por se fazer parte de um grupo. De alguma maneira, o indivíduo se sente fazendo seu dever pelo grupo e não cometendo um mal por si só.
Isso não quer dizer que Ishihara não tenha responsabilidades e que o seu motivo pessoal não tenha influência. Mas até seu motivo só surgiu depois de que ele foi inserido dentro do contexto social da prisão. Essa análise contextualizada é mais detalhada, ao meu ver, do que simplesmente tratá-lo como um "monstro" ou um "drogado", como o anime começa a fazer em certo momento. Ishihara certamente é produto do seu meio social, assim como os garotos prisioneiros o são. O anime quer que tenhamos compaixão pelos jovens, mas se você pôde sentir isto por eles ao entender que eles foram empurrados para o caminho do crime, o mesmo é válido para Ishihara. E lembre-se: compreender não é o mesmo que justificar.
E com essa deixa podemos analisar a relação entre Sociologia e História a partir de um clássico do sociólogo estadunidense Charles Wright Mills, A imaginação sociológica. Neste livro, ele explica que fazer Sociologia requer desenvolver um pensamento que vá para além do imediato e do que podemos ver diretamente, e aí entra o papel da imaginação. Mas imaginação não é o mesmo que divagação abstrata, mas, sim, a tentativa de estabelecer conexões entre coisas. De início, Wright Mills nos fala como os indivíduos não se sentem conectados aos outros e a sociedade e, por isso, geralmente interpretam suas próprias vidas como sendo somente produzidas por si mesmos. Diz ele: "Raramente [as pessoas] têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial" [4].
Um dos protagonistas de Rainbow parece adquirir essa consciência quando ele afirma que "nós não seguimos esse caminho por escolha" [5]. No nosso mundo atual, produto do Iluminismo, é compreensível que as pessoas se entendam como indivíduos dotados de racionalidade e capazes de fazer escolhas. E é evidentemente também que as fazemos, mas a Sociologia fere alguns egos quando ela mostra o limites dessas decisões. De Marx à Wright Mills, sabe-se que, como diria o alemão, "Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram" [6].
E a circunstância que lhes foi dada é a de um Japão destruído pós-Segunda Guerra. Esse período de destruição tem vários efeitos sob a vida de cada um dos personagens, que foram abandonados pelos seus pais ou tiveram seus pais (ou um deles) mortos por consequências diretas ou indiretas da guerra. A primeira situação é o caso de "Joe", deixado em um orfanato junto com sua irmã, presumivelmente pela pobreza de seus pais; já o segundo caso é o de "Suppon", "Baremoto" e "Anchan". Os contextos de seus crimes também facilitam a empatia por eles visto que nenhum deles cometeu atos muito graves ("Suppon" e "Baremoto" cometeram crimes financeiros apenas ou roubos) e a maioria cometeu seus crimes em auto-defesa ou em defesa de alguém ("Joe", Mario e "Heitai"). ("Kyabetsu" e Sakuragi não tem seus crimes explorados no anime, o que é uma pena.) Assim, eles ganham ar de injustiçados e nos compadecemos. (Confesso que chorei com a história de todos rs.)
Mas as próprias violências e/ou injustiças pelas quais passaram indicam um "mundo adulto" também destruído. É evidente que abusadores, no sentido físico e sexual, existiram e existem em diferentes períodos. Mas a vulnerabilidade de crianças órfãos e instituições fragilizadas são facilitadores das situações de violência e é também o que leva os jovens a terem que resolver os problemas com suas próprias mãos. E, embora seja comovente a história do garoto que defende outra aluna de um professor abusador, uma justiça eficaz e uma educação de qualidade que ensinassem a menina a denunciar formariam o melhor panorama para a situação ser resolvida "corretamente". (E coloco "corretamente" entre aspas porque seria a situação ideal, mas não quer dizer que a forma como foi não tenha sido o correto dentro das limitações do momento.)
Assim, não podemos entender meramente as crianças como vítimas sem entender que os adultos também sofreram com a guera. E esse dilema entre os jovens e adultos - que poderia ser entendido enquanto um "conflito geracional" - é bem expresso nos episódios 15 e 16. Sem entrar em spoilers, um dos adultos, um magistrado, diz a um dos jovens protagonistas: "É por causa de merdas como você que esse país não muda desde a guerra" [7]. Ele aqui falha em entender a lógica de causa e efeito das coisas porque não entende o pressuposto sociológico de Wright Mills. Na verdade, a guerra - que os adultos foram sem consultar as crianças, como lembra um dos protagonistas - é que destruiu a vida dos jovens e os tornaram os "merdas" que são. Ele inverte a lógica ao dizer que os atos particulares dos jovens (isto é, seus crimes) causaram o quadro maior (ou seja, o não-desenvolvimento do país), quando é exatamente o contexto social que os leva a tal direção.
Imbuídos por esse tipo de pensamento é que pessoas como Ishihara se sentem no direito de fazer o que fazem. Afinal, nada melhor do que exterminar o "lixo" que atrasa a nação. E, facilitados pelo clima de destruição e pouco controle, é que alguns adultos se aproveitam para abusar dos jovens. Vendo assim, esse pode ser um anime que nos deixa "revoltado", como diria a análise do canal Cronosfera [8]. É verdade. Porém muitos do que ficariam revoltados com essa situação compactuam com discursos como "bandido bom é bandido morto" que possuem similaridades ideológicas muito claras com os adultos de Rainbow por atribuírem a culpa do mal da sociedade a um setor específico da mesma [9] (além de ignorar que o "mal" é um produto social da mesma).
À essa afirmação de que a obra é dura, o diretor Hiroshi Kōjina respondeu que "quando se está feliz você pode esquecer coisas" [10]. E ele, bem com o autor do manga original, George Abe, não buscaram "esquecer" nada, mesmo que isso pudesse "manchar" a história da nação japonesa. Fica aí uma preciosa lição, importante quando estamos vivendo um momento de reescrita, quando não de negação do passado, em termos do que foi a escravidão e a ditadura em nosso país. Enquanto nosso presidente acha melhor esquecer o passado de "uma ferida que tem que ser cicatrizada" [11], os japoneses nos ensinam que as feridas não se cicatrizam ignorando-as.
A recorrência da caracterização dos protagonistas como "lixos" é representativo de como a sociedade busca criar uma separação entre "nós", os corretos, e "eles", os errados |
Indivíduo, sociedade e história
Essa representação de Ishihara é complicada porque ignora um detalhe importante: ele também é uma pessoa. Assim com os jovens foram afetados por seu meio social, Ishihara certamente o foi. Não se trata da defesa do mesmo, não me entendam mal, mas, sim, de desmistificar a ideia de alguém é mau por natureza ou só porque é. É fato que violências acontecem nesses lugares; dados estatísticos sobre isso são difíceis de se obter, mas outras obras culturais demonstram essa realidade. Pixote, a lei do mais fraco, filme brasileiro de 1980 dirigido por Hector Babenco, e "Playground do Diabo", canção de 2014 de Eduardo Taddeo, mostram que esses relatos estão dos dois lados do mundo e atravessam décadas.Eduardo particularmente tem uma frase significativa na música ao falar de "funcionários selecionados e adestrados para ver adolescente como lixo não reciclável". É com essa ideologia que Ishihara atua, pois é assim que lhe foi ensinado que alguém desempenhando seu papel deve agir. Afinal, quando ele faz o que faz, ele também é legitimado por parte da população que vê o "delinquente" como um lixo. Já que há uma definição social de crime, como Durkheim apontou, quem o cometeu é passível de certas punições para "restaurar" a moral da sociedade. É isso que Ishihara pensa estar fazendo e, por isso, declara repetidamente que os jovens são lixos e um perigo para a sociedade. Afinal, a sociedade também acredita nisso. Atualizando as teorias de Durkheim e Foucault, o criminólogo escocês David Garland discute precisamente como funciona esse processo de legitimidade em um contexto histórico que, principalmente depois dos anos 70, vem sendo de recrudescimento penal no mundo.
Conforme a trama se desenrola, descobrimos motivos um pouco mais pessoais de Ishihara para ser sádico. De qualquer forma, essa razão (não vou dar spoiler) só "justifica" suas agressões contra Rokurouta Sakuragi (apelidado de "Anchan"). Porém, Ishihara é agressivo não só com ele, mas com os demais. E, embora ele os maltrate muitas vezes para afetar Sakuragi, já antes dos meninos terem contato com ele, em uma das primeiras cenas do anime, Ishihara os agride. Seu comportamento poderia ser melhor entendido pelo contexto institucional de poder em que ele está, conforme demonstrou o famoso experimento de Stanford. Neste, em uma simulação exatamente em uma prisão, pessoas comuns assumiram os papeis de guardas e prisioneiros. Rapidamente o experimento gerou abuso de poder dos guardas com os prisioneiros. Esse experimento inclusive demonstra a desindividualização sofrida por se fazer parte de um grupo. De alguma maneira, o indivíduo se sente fazendo seu dever pelo grupo e não cometendo um mal por si só.
Isso não quer dizer que Ishihara não tenha responsabilidades e que o seu motivo pessoal não tenha influência. Mas até seu motivo só surgiu depois de que ele foi inserido dentro do contexto social da prisão. Essa análise contextualizada é mais detalhada, ao meu ver, do que simplesmente tratá-lo como um "monstro" ou um "drogado", como o anime começa a fazer em certo momento. Ishihara certamente é produto do seu meio social, assim como os garotos prisioneiros o são. O anime quer que tenhamos compaixão pelos jovens, mas se você pôde sentir isto por eles ao entender que eles foram empurrados para o caminho do crime, o mesmo é válido para Ishihara. E lembre-se: compreender não é o mesmo que justificar.
E com essa deixa podemos analisar a relação entre Sociologia e História a partir de um clássico do sociólogo estadunidense Charles Wright Mills, A imaginação sociológica. Neste livro, ele explica que fazer Sociologia requer desenvolver um pensamento que vá para além do imediato e do que podemos ver diretamente, e aí entra o papel da imaginação. Mas imaginação não é o mesmo que divagação abstrata, mas, sim, a tentativa de estabelecer conexões entre coisas. De início, Wright Mills nos fala como os indivíduos não se sentem conectados aos outros e a sociedade e, por isso, geralmente interpretam suas próprias vidas como sendo somente produzidas por si mesmos. Diz ele: "Raramente [as pessoas] têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial" [4].
Um dos protagonistas de Rainbow parece adquirir essa consciência quando ele afirma que "nós não seguimos esse caminho por escolha" [5]. No nosso mundo atual, produto do Iluminismo, é compreensível que as pessoas se entendam como indivíduos dotados de racionalidade e capazes de fazer escolhas. E é evidentemente também que as fazemos, mas a Sociologia fere alguns egos quando ela mostra o limites dessas decisões. De Marx à Wright Mills, sabe-se que, como diria o alemão, "Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram" [6].
Eis o momento em que um dos personagens faz uma reflexão sobre o contexto social a qual foram submetidos |
E a circunstância que lhes foi dada é a de um Japão destruído pós-Segunda Guerra. Esse período de destruição tem vários efeitos sob a vida de cada um dos personagens, que foram abandonados pelos seus pais ou tiveram seus pais (ou um deles) mortos por consequências diretas ou indiretas da guerra. A primeira situação é o caso de "Joe", deixado em um orfanato junto com sua irmã, presumivelmente pela pobreza de seus pais; já o segundo caso é o de "Suppon", "Baremoto" e "Anchan". Os contextos de seus crimes também facilitam a empatia por eles visto que nenhum deles cometeu atos muito graves ("Suppon" e "Baremoto" cometeram crimes financeiros apenas ou roubos) e a maioria cometeu seus crimes em auto-defesa ou em defesa de alguém ("Joe", Mario e "Heitai"). ("Kyabetsu" e Sakuragi não tem seus crimes explorados no anime, o que é uma pena.) Assim, eles ganham ar de injustiçados e nos compadecemos. (Confesso que chorei com a história de todos rs.)
Mas as próprias violências e/ou injustiças pelas quais passaram indicam um "mundo adulto" também destruído. É evidente que abusadores, no sentido físico e sexual, existiram e existem em diferentes períodos. Mas a vulnerabilidade de crianças órfãos e instituições fragilizadas são facilitadores das situações de violência e é também o que leva os jovens a terem que resolver os problemas com suas próprias mãos. E, embora seja comovente a história do garoto que defende outra aluna de um professor abusador, uma justiça eficaz e uma educação de qualidade que ensinassem a menina a denunciar formariam o melhor panorama para a situação ser resolvida "corretamente". (E coloco "corretamente" entre aspas porque seria a situação ideal, mas não quer dizer que a forma como foi não tenha sido o correto dentro das limitações do momento.)
Assim, não podemos entender meramente as crianças como vítimas sem entender que os adultos também sofreram com a guera. E esse dilema entre os jovens e adultos - que poderia ser entendido enquanto um "conflito geracional" - é bem expresso nos episódios 15 e 16. Sem entrar em spoilers, um dos adultos, um magistrado, diz a um dos jovens protagonistas: "É por causa de merdas como você que esse país não muda desde a guerra" [7]. Ele aqui falha em entender a lógica de causa e efeito das coisas porque não entende o pressuposto sociológico de Wright Mills. Na verdade, a guerra - que os adultos foram sem consultar as crianças, como lembra um dos protagonistas - é que destruiu a vida dos jovens e os tornaram os "merdas" que são. Ele inverte a lógica ao dizer que os atos particulares dos jovens (isto é, seus crimes) causaram o quadro maior (ou seja, o não-desenvolvimento do país), quando é exatamente o contexto social que os leva a tal direção.
Eis a ideologia dominante, impregnada em agentes carcerários, médicos e magistrados, que faz boa parte da sociedade "ver adolescente como lixo não reciclável" |
Imbuídos por esse tipo de pensamento é que pessoas como Ishihara se sentem no direito de fazer o que fazem. Afinal, nada melhor do que exterminar o "lixo" que atrasa a nação. E, facilitados pelo clima de destruição e pouco controle, é que alguns adultos se aproveitam para abusar dos jovens. Vendo assim, esse pode ser um anime que nos deixa "revoltado", como diria a análise do canal Cronosfera [8]. É verdade. Porém muitos do que ficariam revoltados com essa situação compactuam com discursos como "bandido bom é bandido morto" que possuem similaridades ideológicas muito claras com os adultos de Rainbow por atribuírem a culpa do mal da sociedade a um setor específico da mesma [9] (além de ignorar que o "mal" é um produto social da mesma).
Considerações finais
Essa é uma obra dura e entender que todos ali - até os adultos - são produtos daquele contexto pode ser mais duro ainda. Mas como o próprio anime diz no início de cada episódio: "Acreditamos que as cenas explícitas dessa animação são particularmente importantes para retratar a atmosfera desse período". Isso é se propor a ser um documento histórico, mesmo que alguns possam achar difícil ver uma série tão triste e dura. Mas não foi a primeira vez que essas dores foram remoídas; como já citei no início, Rainbow funciona como uma ótima síntese para as novas gerações que não tiveram a oportunidade de ver obras como Ashita no Joe (1968-73) e Hadashi no Gen (1973-87), cujas similaridades com a história de Mario e "Suppon", respectivamente, são inegáveis.A frase inicial do anime, que foi pensada provavelmente como um mero aviso, reflete indiretamente a condição de uma obra que serve como um ótimo documento histórico |
À essa afirmação de que a obra é dura, o diretor Hiroshi Kōjina respondeu que "quando se está feliz você pode esquecer coisas" [10]. E ele, bem com o autor do manga original, George Abe, não buscaram "esquecer" nada, mesmo que isso pudesse "manchar" a história da nação japonesa. Fica aí uma preciosa lição, importante quando estamos vivendo um momento de reescrita, quando não de negação do passado, em termos do que foi a escravidão e a ditadura em nosso país. Enquanto nosso presidente acha melhor esquecer o passado de "uma ferida que tem que ser cicatrizada" [11], os japoneses nos ensinam que as feridas não se cicatrizam ignorando-as.
Notas
[Nota 1: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves e Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.]
[Nota 2: VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Disciplina, direito e subjetivação: uma análise de Punição e estrutura social, Vigiar e punir e Cárcere e fábrica. Campinas: Unicamp, 2010. p. 24.]
[Nota 3: http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2010/12/apesar-de-leis-ex-presos-enfrentam-resistencia-no-mercado-de-trabalho.html]
[Nota 4: WRIGHT MILLS, Charles. A imaginação sociológica. 2ª ed. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969. p. 10]
[Nota 5: A partir dos 12:21, segundo o player do Goyabu: https://goyabu.com/video/17612/]
[Nota 6: MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. p 25]
[Nota 7: Aos 21:03, segundo o player do site Goyabu: https://goyabu.com/video/17609/; troquei "são" por "é" por questões de concordância]
[Nota 8: https://www.youtube.com/watch?v=Ep9T0euRQ2A]
[Nota 9: Por exemplo, é o discurso do atual presidente que ao se eleger disse que era "urgente acabar com a ideologia que defende bandidos": https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/americas/detalhe/bolsonaro-e-urgente-acabar-com-a-ideologia-que-defende-bandidos-e-criminaliza-policiais]
[Nota 10: https://www.animenewsnetwork.com/convention/2010/rainbow-with-hiroshi-koujina-q&a]
[Nota 5: A partir dos 12:21, segundo o player do Goyabu: https://goyabu.com/video/17612/]
[Nota 6: MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. p 25]
[Nota 7: Aos 21:03, segundo o player do site Goyabu: https://goyabu.com/video/17609/; troquei "são" por "é" por questões de concordância]
[Nota 8: https://www.youtube.com/watch?v=Ep9T0euRQ2A]
[Nota 9: Por exemplo, é o discurso do atual presidente que ao se eleger disse que era "urgente acabar com a ideologia que defende bandidos": https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/americas/detalhe/bolsonaro-e-urgente-acabar-com-a-ideologia-que-defende-bandidos-e-criminaliza-policiais]
[Nota 10: https://www.animenewsnetwork.com/convention/2010/rainbow-with-hiroshi-koujina-q&a]
[Nota 11: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/07/30/bolsonaro-diz-que-nao-abrira-arquivos-da-ditadura-deve-ficar-no-passado.htm]