Balance Policy - Quando a mudança é drástica demais



Acho que quase todo mundo deve conhecer, nem que seja superficialmente, o termo em inglês gender bender. São narrativas onde um ou mais dos personagens trocam de sexo. Esse recurso é muito visto em mangás de comédia, mas também pode ser objeto de abordagens mais sérias em obras de romance e drama. Essa troca também possui níveis, pode ser apenas uma troca de roupas  até uma completa mudança corporal. Os motivos dessas trocas de sexo também são os mais variados possíveis, como magia, a necessidade de se esconder de algo ou alguém e assumir uma nova identidade, ou a própria vontade pessoal de mudar. Mas e quando essa troca é forçada? Não em um contexto de comédia ou magia, e sim em um Japão onde a taxa de natalidade de mulheres foi reduzida drasticamente e meninos começaram a ser convertidos em meninas para suprir essa demanda? Basicamente, isto é Balance Policy.

Primeiramente, vamos aos dados técnicos. Balance Policy é composto por dois volumes e 14 capítulos, foi publicado de 26 de abril de 2010 até 28 de fevereiro de 2014 (demorou bastante a publicação!), na revista Young King OURs GH, a mesma publicação do mangá Lúcifer e o Martelo, que foi publicado no Brasil, sendo a publicação mais famosa da revista. O autor do mangá é Akihito Yoshitomi, mais famoso pelo mangá Eat-Man, que ganhou um anime em 1997, outra obra sua ganhou anime também, Blue Drop, em 2007. Ele também é bastante conhecido pelas suas one-shots do gênero yuri (narrativas com sexo entre garotas).


Acho que no primeiro parágrafo já ficou bem claro sobre o que se trata Balance Policy. Como o próprio nome do mangá pode sugerir, já que em português significa "política de equilíbrio", tudo gira em torno de uma realidade fictícia onde a taxa de natalidade misteriosamente diminui, principalmente de meninas. E sem meninas, sem bebês! Por exemplo, a população do Japão foi reduzido em vários milhões! Para resolver esse problema, o governo teve a "brilhante" ideia de transformar meninos em meninas para que estes possam dar a luz.

O mangá não se foca numa escala macro desta política, mas sim de um caso em específico de um menino que foi feminilizado, Kenji, o qual depois de um ano de "transformação" voltou para sua cidadezinha, onde reencontrou o seu melhor amigo Masaomi. E é justamente sobre a dinâmica entre esses dois personagens principais, além de eventualmente um ou outro secundário, que se desenrola esse slice-of-life com elementos sci-fi. Não é difícil imaginar a problemática dessa relação, Kenji até o ano passado era um garoto, some por um ano, e volta como uma menina! Tanto ele como Masaomi tiveram muito o que pensar e sentir em Balance Policy!


O mangá não perde tempo com introduções, na primeira página já vamos vendo como se desenrola a relação do "casal" principal. Masaomi fica claramente consternado, não sabe como encarar o amigo, e isso faz total sentido, a mudança é severa demais! Ele não sabe se olha diretamente, se desvia o olhar, se fala como antes ou o trata como menina, é realmente uma situação muito confusa. Kenji, por outro lado, quer e exige se tratado como antes, afinal de contas, ele ainda é menino e tenta forçar uma situação em que nada realmente mudou, mas não é bem assim. É um duelo sobre aceitação, tanto Kenji como Masaomi emulam sua relação pré-mudança de Kenji.

É realmente interessante observar como os dois tentam fazer exatamente o que faziam antes, como andar de bicicleta, ir no clube que montaram, ver revistas de mulher pelada, jogar baseball. Contudo, o constrangimento é nítido, Masaomi trata Kenji como um doente, medindo suas palavras e tentando não magoá-lo. Isso frusta e irrita Kenji, o qual não quer se tratado como doente, mas ele não deixa de provocar os pudores de Masaomi, insinuando mostrar partes do seu corpo. Percebe-se que Masaomi não quer pensar em Kenji como menina para não magoá-lo nem se magoar.


É curioso e um exercício bem complexo tentar entender o que se passa na cabeça de Kenji, aparentemente ele aceitou sua mudança e em certo momento sabe que deverá procurar um homem e ter filhos. Mas até quanto vai essa resolução? Ele é um menino que ainda se vê como menino, só teve seu corpo modificado. Por exemplo, ele nutre uma paixão antiga pela irmã mais velha de Masaomi, e essa irmã faz questão de tentar adaptar Kenji ao universo feminino, mesmo isso colocando mais caraminholas na cabeça do menino.

Outra personagem interessante dessa relação é uma amiga em comum de Kenji e Masaomi. A menina era apaixonada por Kenji e ão consegue aceitar a mudança, inclusive pediu uma vez para que Kenji se vestisse de menino para poderem conversar em paz. É difícil ter certeza, mas não dá para dizer se em algum momento Kenji realmente passou a se interessar por um menino, até mesmo não dá para dizer ao certo se Kenji e Masaomi formariam um casal. Mas é difícil não pensar que em algum momento um ou outro não se imaginou mantendo uma relação entre os dois.


Penso que a dificuldade em imaginar um cenário como esse se dá basicamente por ser uma situação implausível (até o momento), pois ninguém muda de sexo desta maneira. É mais comum ver situações na ficção onde pessoas mudam de sexo por vontade própria. Mas no caso de Balance Policy, Kenji virou uma menina só fisicamente, sendo um menino por dentro, que brinca com essa situação, como quando finge ser outra pessoa e revela sua situação posteriormente, somente para ver a cara de surpresa das pessoas, mas que também sofre, já que todo mundo passa a tratar de maneira diferente, inclusive levando cantadas na rua, uma coisa até então inimaginável.

Há ainda uma pequena história paralela, de um menino que também é "transformado", que encontrou Kenji quando este estava no hospital. Essa trama paralela é bem pouco desenvolvida, tem pouco espaço na obra, mas serve para mostrar um outro ponto de vista, sobre um garoto que aceita muito melhor que Kenji a sua mudança, inclusive já procurando se relacionar com o senpai que gostava antes de ser modificado. Ou seja, há garotos para quais este programa governamental lhes cai bem, já outros não. O critério de seleção do programa é o mais arbitrário possível. Não sabemos se há uma implicação relativa à saúde dos meninos, ou se há alguma restrição genética, só o que sabemos é que há um interesse financeiros dos pais. Ou seja, os genitores ganham uma bela ajuda governamental para mandarem seus filhos ao programa.


Dá para afirmar tranquilamente que mangá é bem escrito, uma história de "comming of age" bastante desenvolvida, ou seja, mostra o crescimento e amadurecimento dos personagens, pois são ambos adolescentes, que é justamente a fase mais fascinante e assustadora do descobrimento da sexualidade. Acontece que o enredo de Balance Policy tem um problema que seria uma preocupação séria em uma política governamental como essa, por mais absurda que possa ser, e nem é levado em consideração, o fator psicológico. Não é de hoje que percebemos que psicólogos são muito raros em mangás (salvo SHI NI ITARU YAMAI, que é um mangá sobre psicologia e que já analisei no blog).

Brincadeiras à parte, é uma completa loucura simplesmente pegar meninos normais, na maior parte das vezes heterossexuais, transformá-los em meninas e esperar que aceitem sua condição com o tempo e deem a luz muitos filhos a fim de repovoar o Japão. Não é mostrado se há ou não acompanhamento terapêutico para fazê-los aceitar a condição, mas a própria dinâmica dos personagens faz o leitor crer que realmente foram só mudanças corporais, a mente continua a mesma. Isto já não é mas tão estranho se levarmos em conta que a transição não depende da vontade dos meninos "transformados", uma vez que fica demonstrado que são os pais que oferecem seus filhos em troca de benefícios monetários. Não seria mais fácil fazer o programa com pessoas que desejassem a transformação?


Mesmo Balance Policy abordando uma política tão problemática que não soaria plausível depois de uma análise do leitor, creio que isto não seja um problema de verdade. Sabemos que o "gênero" gender bender é usualmente visto como um "subgênero" da comédia, mas neste caso em particular, foi muito bem inserido em uma temática de ficção científica e drama. E mais do que julgar o programa governamental em si, Balance Policy foca em como as pessoas normais lidam com uma mudança tão brusca do senso comum deles. É uma curiosa exposição de sentimentos, com sutilezas muito bem exemplificadas, onde nada é bem o que parece e ninguém é realmente sincero com os seus sentimentos.

Para complementar, fica um gosto de incompletude ao ler Balance Policy. O relacionamento entre os personagens se constrói lentamente e quando esperamos um clímax, ele simplesmente não vem. Aparentemente isso seria uma coisa ruim, mas neste mangá esse elemento confere um gosto agridoce à obra, o que ilustra de maneira precisa que muitas vezes os relacionamentos humanos são assim mesmo,  mesmo que não se desenvolvam, servem para nos fazer crescer.

Enquadramento interessante do autor, extrapolando as linhas e expandindo um desenho como destaque.

A arte de Balance Policy merece algumas linhas deste texto. Embora o design dos personagens seja bem genérico e não fuja do que entendemos como um mangá padrão, seu traço é limpo e claro, bem como seus cenários. Além disso, o autor usa frequentemente o recurso dos personagens, ou partes destes, saírem de seus quadros, a fim de complementar a página e passar um dinamismo bem legal. É realmente gostoso ler Balance Policy, tanto pelo enredo inusitado como pela arte convincente.

Balance Policy é uma ótima pedida para quem curte uma boa história sobre romances/quase romances em cenários estranhos. Além disso, mesmo com as incongruência de verossimilhança, se mostra um estudo diferente e arrojado sobre um cenário bastante inusitado, a troca forçada de sexo, bem como sobre como os personagens lidam com essas mudanças estruturais em Kenji principalmente. Se você gostou da premissa deste mangá, não deixe de dar uma chance a ele!


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