Haru no Noroi - E a difícil tarefa de superar os fantasmas do passado.


Haru no Noroi pode ser traduzido como Maldição da Primavera e esse mangá faz um curioso trocadilho com seu nome, já que haru pode significar tanto a mais bela e florida das estações do ano como também Noroi, a irmã de Natsumi, que acabou falecendo em plena juventude em virtude de um câncer muito agressivo, quando estava prestes a se casar. Esse é um curioso josei, onde a memória de uma pessoa falecida se torna uma sombra espessa que recai sobre os vivos amarrando suas vidas, mas não por sua própria culpa, mas pelos seus sentimentos mal entendidos e pelos tabus e incompreensões da sociedade.

Haru no Noroi é um mangá de autoria de Asuka Konishi, uma mangaká que iniciou sua carreira faz pouco tempo, seu único outro mangá que está sendo publicado, Raise wa Tanin ga Ii, começou sua serialização em agosto de 2018. O próprio Haru no Noroi é bem recente, tendo sido publicado de 28 de novembro de 2015 até 28 de novembro de 2016. A obra foi publicada na revista Comic ZERO-SUM, publicação voltada ao nicho demográfico josei, onde foram lançados mangás como 07-Ghost e Loveless. Haru no Noroi é dividido em oito capítulos, totalizando dois volumes no notal.


O mangá participou do prêmio da revista Kono Manga ga Sugoi! (Este Mangá é Maravilhoso!) de 2017, alcançando a segunda posição por votação do público feminino, perdendo para o mangá Kin no Kuni Mizu no Kuni, de Nao Iwamoto. Tal colocação demonstra que a autora possui uma carreira que está evoluindo significativamente em pouco tempo, sendo reconhecida pelo seu trabalho duro e qualidade de seu mangá. Bem, acho que agora está na hora de escrever um pouco sobre o mangá, não é mesmo? Então, vamos lá!

Em suma, Haru no Noroi aborda uma prática que antigamente era considerada normal em vários lugares do mundo, e não duvido que em algum cantinha do planeta Terra ainda o seja. Mas do que diabos eu estou falando? De se relacionar com algum parente, mais especificamente uma irmã da pessoa que você mantém um relacionamento amoroso depois que esta morre. Naturalmente podemos pensar que isso é uma grande falta de consideração pela pessoa falecida, por parte do marido/namorado e da própria irmã, mas as coisas não são tão simples, principalmente em Haru no Noroi. O que vale mais, a memória da pessoa falecida ou o amor dos vivos?


Vou citar um exemplo de alguém próximo a mim, não vou citar os nomes dos envolvidos para não criar constrangimentos. O Bisavô desta pessoa ficou viúvo muito cedo, ficando com dois ou três (não me lembro ao certo) filhos para criar. Pouco tempo depois este senhor se casou com uma das irmãs da primeira esposa, relacionamento qual gerou mais de 10 filhos. O curioso é que neste caso tal ato não foi considerado um tabu, na verdade foi até incentivado pelas duas famílias.

Estes eram outros tempos, sendo que a lógica na época era que o homem não poderia ficar sozinho e criar os filhos e trabalhar, sendo bastante conveniente que se casasse com uma outra irmã sobrevivente, que pudesse cuidar dos sobrinhos e da casa, ao invés de buscar um relacionamento fora com alguém desconhecido. Assim as coisas ficariam em família. Está história e como muitas outras que nossos avós podem mencionar são frutos de uma época diferente da nossa, onde uma atitude como esta até poderia se considerada correta.


Ocorre que Haru no Noroi se passa nos dias atuais, e em uma sociedade cosmopolita como o Japão, sendo que estas soluções "convenientes" não possuem mais o espaço necessário para se verem livres de críticas, na verdade esta situação é até um tabu bastante complicado de se transpor. Dentro deste contexto o que vale mais, os sentimentos dos vivos ou as aparências perante a sociedade? Por vezes não seria melhor deixar o falecido realmente "morto" e viver a vida como se quer? Haru no Noroi transita neste tema de uma maneira bastante agridoce, prendendo o leitor do começo ao fim.

Haru no Noroi foi bastante convincente em criar uma aura pesada e carregada em cada capítulo, claro que isso foi ajudado pela maravilhosa e curiosa arte de Asuka Konishi, a qual deu ao mangá um ar noir, se eu puder chamar assim. Mas não somente pela arte que transformou esse mangá em um material tão denso, outra parte do crédito vai para o seu próprio enredo, o qual aborda temas pesados por si mesmo, como a perda de alguém amado, o desconforto de manter um relacionamento não aceito socialmente, o suicídio e a depressão.


Além disso, muito embora seja um mangá curto, apenas dois volumes, ele não vai com pressa, seus capítulos são transitados lentamente, onde o enredo vai se tornando cada vez mais denso e obscuro, isso sem descambar em algo macabro ou excessivamente apelativo. Esse ritmo lento colabora com o objetivo da autora em revelar a conta-gotas os segredos e sentimentos de todas as personagens principais. Nem mesmo Haru, a falecida, é deixada sem que fossem revirados os seus esqueletos escondidos no armário. Em resumo, Haru no Noroi é a realidade nua e crua, como ela verdadeiramente é, sem rodeios nem floreios. É aqui que reside o principal mérito deste mangá.

Antes de aprofundar ainda mais o tema, vamos dar uma sinopse mais detalhada de Haru no Noroi. A história segue a vida de Natsumi, a qual perdeu sua irmã para um câncer terminal, quando esta ainda era noiva do jovem milionário Tougo. Natsumi nutria uma adoração extrema pela irmã, que pode ser traduzida nas suas palavras perante o seu caixão, afirmando que sua irmã falecida não precisaria esperar muito para elas se encontrarem. Nesta época Natsumi tencionava até mesmo o suicídio, o que teria se concretizado não fosse pela ação rápida de Tougo. Só lembrando que daqui para frente terão alguns spoilers, ok?


Ocorre que Tougo tinha outros planos para Natsumi, o principal era convidá-la para sair. Este "sair" tem a conotação de um encontro, não sendo natural que pouco tempo depois do velório o viúvo e a cunhada saiam em um encontro né? Natsumi, ainda não entendendo o motivo, aceita o convite, mas com uma inusitada condição, que eles apenas visitassem os lugares em que ele e sua irmã falecida, Haru, tivessem ido juntos, como cafés, praças e alguns outros lugares, como naqueles locais onde se pode jogar baseball onde uma máquina atira as bolas. Por intermédio destes passeios, os dois vão se conhecendo cada vez mais, tendo tempo para colocarem em ordem os seus sentimentos conflituosos em relação a eles mesmos a a falecida Haru.

Lembram que eu falei que um possível relacionamento dos dois seria um tabu e alvo de diversas críticas, já que tal prática não seria mais aceita nos tempos modernos? Pois é, mas falando um pouco de como Tougo conheceu Haru, vemos que algumas tradições bem estúpidas se mantém forte até os presentes dias. Tougo é herdeiro de uma família de banqueiros riquíssima, além disso é um rapaz prodígio, com várias formações universitárias e cursos diversos, além de bonito claro. Portanto, Tougo seria considerado o "homem ideal".


A família de Tougo, principalmente a sua mãe, visando a manutenção da linhagem da família, resolveu casá-lo com uma herdeira de um ramo distante do seu clã, mas que nutrisse laços de sangue mesmo que longínquos. Isso propiciaria a "pureza" da família, bem como desviaria as críticas de quem falasse algo sobre algum possível casamento com uma parente mais próxima. E justamente a família ideal é a da Natsumi e Haru, uma família que já foi muito rica mas que decaiu até o ponto de ser uma família de classe média típica do Japão.

A mãe de Tougo proporcionou o encontro entre ele e as irmãs Natsumi e Haru. Logo foi decidido (pela mãe) que ele deveria se unir em matrimônio com Haru, por ela ser virtuosa, meiga, gentil, delicada e talentosa, sendo que seria uma esposa perfeita para Tougo. Natsumi não foi nem considerada como possível esposa, por ser praticamente o contrário da irmã, sendo incrivelmente tímida, estabanada e nada delicada. Como podem ver, o relacionamento entre Tougo e Haru foi arranjado, mas isso não é sinônimo que ambos não se dessem bem, muito pelo contrário.


Dentro deste contexto se desenvolve a trama de Haru no Noroi, ou seja, no relacionamento entre os dois sobreviventes, Natsumi e Tougo. É bastante interessante e complexa a maneira na qual os dois vão entendendo seus sentimentos ao longo do mangá, e não espere soluções simples nem motivos banais, ambos possuem seus próprios pesadelos a serem superados, e não são fáceis de se lidar, diga-se de passagem. No mangá Natsumi possui uma adoração quase doentia pela irmã, ou pelo menos mais do que seria considerado normal, chegando ao ponto de perguntar a si mesma se não teria uma tendência incestuosa.

Mas não pensem que Haru no Noroi descamba para um relacionamento homossexual, mesmo que platônico, entre irmãs, longe disso. Tirando as próprias dúvidas de Natsumi, percebe-se que sua adoração pela irmã se classificaria mais como uma devoção irrestrita do que um sentimento propriamente amoroso. Haru era considerada perfeita por todos, inclusive por sua irmã, que mesmo sendo mais velha, teve sempre a irmã como um modelo impossível de ser alcançado, além de ser a única da família com quem realmente se dava bem. Diante disto, a morte da irmã é de difícil superação por Natsumi, ainda mais por não se deixar abrir facilmente a novos sentimentos, principalmente de Tougo, ou melhor, ela nem chega a perceber nada que acontece ao seu redor, mais cega que uma porta.


Para complicar, Tougo também não é um personagem fácil de se definir e sim alguém bastante complexo. Ele é aquela típica personificação de alguns galãs de shoujo, bonito, inteligente, rico e frio como um iceberg, não deixando suas emoções transparecerem tão facilmente. O mais curioso de sua personalidade é que não possuía desejos ou sonhos até conhecer Natsumi, deixando sua mãe decidir o seu futuro como bem entendesse, já que para ele tanto fazia onde ele iria parar, inclusive falando de matrimônio.

Um ponto que pode não ter ficado claro na leitura para alguns é sobre o que significa ao certo essa simbologia da "maldição da primavera". Como já havia dito lá encima, fazia referência à irmã de Natsumi, que se chama Haru (primavera). Mas como uma pessoa morta pode amaldiçoar alguém? Na ficção são várias as formas que isso pode acontecer, como magia, feitiços e palavras mágicas. Mas nenhum destas situações é o caso de Haru no Noroi. A maldição é algo muito mais sutil e envolvente, como também algo real e que não está no escopo de magias e feitiçarias.


Para explicar melhor temos que voltar um pouco ao mangá. Embora fosse um noivado arranjado, Haru claramente amava Tougo, e isso com todas as suas forças. Natsumi e Tougo conheciam esse sentimento. Em virtude disto, mesmo com a morte da garota o conhecimento de seus sentimentos ainda ficou vivo nas consciências de Natsumi e Tougo, um verdadeiro empecilho para o relacionamentos dos dois, já que algo do gênero seria claramente uma traição à memória da menina.

Digna de nota, a muito competente maneira como o mangá trabalhou a própria Haru, por meio de diversos flashbacks, mostrando que mesmo a doce e prendada Haru escondia seus demônios internos, o que ficou claramente evidenciável quando Natsumi descobriu que ela preferiria que a irmã morresse do que se casasse com seu amado, pois já tinha percebido a maneira que Tougo olhava para Natsumi. Está certo que isso pode não ser sério, apenas um desabafo de alguém à beira da morte no auge da juventude e que se encontra perdidamente apaixonada, mas o efeito de uma revelação destas é claramente arrasador. Diante de todo esse drama bastante pesado, percebe-se que não é fácil para Natsumi e Tougo superarem essa maldição aparentemente não intencional de Haru.


Outro tema que o mangá aborda com maestria e que devo mencionar, nem que seja a título de mera curiosidade, diz respeito de que nem sempre as pessoas se apaixonam pelo tipo de pessoa que idealizou, e isso é um dos "temperos" da vida ao meu ver, esta imprevisibilidade dos sentimentos. E esse foi o caso de Tougo, o qual nunca pensou se apaixonar por alguém tão diferente dele, como Natsumi é. É certo que há aquela famosa frase de que os opostos se atraem, mas o contrário também é verdadeiro, o ponto é que não há nada certo e definido quando se fala de sentimentos.

Para finalizar, devo ressaltar que para quem procura um bom josei, Haru no Noroi é uma recomendação fantástica. Creio que o mangá foi bastante eficiente em demonstrar os sentimentos das personagens principais de uma maneira bastante verdadeira e convincente, mas não somente seus sentimentos bons, os ruins também, como o medo e a insegurança. Além disso, é uma leitura curta e fluída, sendo perfeito para uma tarde de inverno chuvosa. Além disso, sempre é válido valorizar e reconhecer o trabalho de novos artistas, como no caso da Asuka Konishi, autora deste muito bem recomendado mangá.


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