Space Ship EE. Uma Odisseia Superflat no Espaço.


Não é segredo para ninguém que sou apaixonado por ficção-científica, sendo que é sempre gratificante conhecer obras diferentes enquanto eu fuço por aí. Sendo assim, vou falar um pouco de um mangá curiosíssimo, Space Ship EE, o qual já chama a atenção pela arte diferenciada, sem contar que é de autoria de Aya Takano, uma das maiores expoentes do movimento de arte pós-moderna superflat. Então já sabem que vão encontrar algo bastante psicodélico, além de uma tocante aventura espacial!

Eu queria já começar falando de Space Ship EE, mas isso é impossível sem antes eu falar sobre o movimento superflat e sobre quem é Aya Takano. Superflat é um movimento artístico pós-modernista, fundado por Takashi Murakami, sendo influenciado pelos estilos de mangá e anime. Ele está presente em várias formas da arte gráfica, animações e cultura pop, representando, nos dizeres de Murakami, o vazio da cultura consumista japonesa. 


É realmente difícil descrever o que seja o estilo superflat além de ser algo super psicodélico e surreal. Alguns trabalhos exploram o consumismo e fetichismo sexual que se apoderou do Japão pós-guerra, com uma crítica sagaz do modo de vida otaku. Há ainda a presença de conteúdos sexualizados, mas de formas grotescas e distorcidas, cheias de cores e simbologias, por vezes parodiando a "arte lolicon" encabeçada pela atual geração otaku. O medo de crescer também é um tema bastante presente, por isso elementos infantis são bastante utilizados.

Uma das principais influências de Murakami foi o diretor Hideaki Anno, o famoso criador de Neon Genesis Evangelion. Outros artistas que seriam enquadrados dentro do movimento superflat seriam Koji Morimoto, famoso diretor e animador do estúdio 4ºC, reconhecido pelo seu estilo psicodélico, vocês podem ter uma amostra de seus trabalhos dando uma conferida nestes textos do blog: Robot Carnival, Extra e Short Peace. Hitoshi Tomizawa também é considerado um artista do estilo superflat, e também é figurinha carimbada do blog, com seus mangás Alien 9, Milk Closet, Battle Royale II: Blitz Royale e Yume Nikki, só a título de exemplo.


Falando um pouco da Aya Takano, ela nasceu em 1976 em Saitama. Além de ser uma artista plástica superflat, ela é ensaísta de ficção científica, e claro, mangaká. Aya Takano observou com sagacidade o boom que o interesse por adolescentes e meninas pré-púberes recebeu a partir de 1980, virando um objeto da indústria de consumo japonesa. Essa infantilização e objetificação feminina foi mais forte, e ainda é, no Japão do que em qualquer lugar. Ela, como uma artista feminina, utilizou dos mesmos elementos criticados para tentar criar uma forma subversiva de arte, que vai de encontro com o próprio objetivo do movimento superflat.

Aya Takano tentou reinventar a cultura otaku por uma perspectiva feminina. Como ela sempre possui interesse em ficção científica desde a infância, seu principal objetivo foi criar uma visão de como uma heroína feminina impactaria na sociedade. O seu estilo fala por si mesmo, basta jogar Aya Takano no Google para se ter uma ideia. Ela usa e abusa de personagens pré-púberes, mesmo que somente na aparência, e é bem comum apresentar as suas personagens nuas ou seminuas, mamilos aparecendo são os elementos mais comuns de seu trabalho. 


Mas ao contrário do que pode parecer, não é visualmente chocante, seu estilo surreal e infantilizado , com corpos magros, cabeças e olhos grandes torna o nu natural ao ambiente, afastando qualquer interesse sexual, pelo menos para as pessoas normais. Além disso, não é interesse dela sexualizar suas obras, seria mais algo como colocar suas personagens na transição da infância para a vida adulta, tanto fisicamente como psicologicamente.

Acho que acabei falando mais sobre superflat e a autora Aya Takano do que falarei do próprio mangá! Vamos resolver isto então. Space Ship EE foi publicado em 2001 diretamente para venda, não tendo sido serializado em nenhuma revista, sendo composto por apenas um grande e único capítulo, além de vários extras sobre informações das personagens e sobre o mundo quem se passa a história de Space Ship EE. 


A sinopse oficial começa com a seguinte frase: "eu estou dentro de uma espaçonave... lá fora está o espaço profundo. O nome da minha nave - Spaceship EE." Em resumo, Space Ship EE se passa em um futuro próximo, no ano de 2038 e conta a história de Noshi Hyoda, uma funcionária de escritório de 23 anos que tem como único passatempo jogar nos fliperamas, e que está profundamente imersa em uma severa crise existencial diante de uma rotina que somente oferece opressão e apatia, enquanto anseia por ver as belezas do mundo. O mangá busca descobrir para onde ela deve ir, se contentando com a vida medíocre que leva, caindo com peso na rotina, ou buscar uma resposta nas estrelas distantes.

Parece um tanto filosófico afirmar que ela busca procurar um consolo para sua vida de miserável funcionária de uma grande empresa nos confins das estrelas, mas é isto mesmo. Ela possui o distante sonho de poder ter uma nave espacial e embarcar em uma jornada pelo espaço vazio, e é esse sonho que a mantém viva. Noshi Hyoda até possui um relacionamento com um companheiro de empresa, sai, se diverte, é uma expert em vídeo games, mas algo falta em sua vida, a rotina lhe oprime, assim como oprime boa parte dos japoneses nas grandes metrópoles, e digo mais, como ocorre em todo o nosso mundo pós-moderno.


O ponto de virada na vida de Noshi Hyoda ocorre quando ela, cansada da vida que leva, e por se ver vítima de fofocas e perseguições no trabalho, comete a loucura de invadir um centro espacial japonês, passar por toda a segurança e simplesmente furtar uma nave espacial que seria lançada em pouco tempo. Aparentemente o que seria a realização do seu sonho, se mostrou uma sentença de morte. Os alimentos, a água e a reserva de oxigênio eram escassos. Não havia como enviar uma equipe de resgate e nem ela sabia pilotar a nave de volta à Terra. 

Mas como o mangá não poderia simplesmente terminar com a nossa protagonista simplesmente morrendo de fome ou sede em uma nave espacial, outra virada acontece em sua vida. Ela é resgatada por uma alienígena humanoide, chamada Meg, e é levada para viver na Space Ship EE, uma nave gigantesca com mais de 200.000 habitantes construída para abarcar uma raça inteira que fugiu da destruição de seu planeta natal. Para poder morar na nave, Noshi hyoda teve que procurar um emprego, trabalhou primeiro na agricultura e depois foi selecionada para trabalhar no setor militar da nave.


Mas vamos falar um pouco de Meg, a alienígena. Há muito tempo ela observava a protagonista a partir de sua nave, por meio de conexões neurais, projeções e outros meios. Havia uma ligação que nenhuma das duas poderia entender. Meg era inclusive a maior rival de Hyoda no fliperama. Por isso, esse encontro não havia se dado por acaso. As duas logo viram amigas e Hyoda se situa mais facilmente na vida na nave, afinal de contas, ela estava onde queria, junto às estrelas, longe da rotina torturante pela qual era exposta dia a dia.

Meg e as outras pessoas de sua raça são incrivelmente semelhantes aos humanos terrestres, apenas possuindo como diferentes os sistemas neurológicos, com a capacidade de transmitir entre eles, blocos de informação compactados que são absorvidos imediatamente e assimilados pelo receptor. Além de possuírem uma pequena antena corporal que pode se manifestar em vários lugares. Há ainda várias outras raças de alienígenas na grande espaçonave, a maioria não possuindo nada de humanoide em sua essência.


Boa parte da história de Space Ship EE fala sobre o passado de Meg, que foi envolvida em uma grande conspiração universal, por intermédio de um ser denominado Teru, que pode assumir a forma de uma garota. Hyoda passa a entender um pouco dos poderes de Meg e como ela fez para se conectar com ela. Meg é uma "herdeira das estrelas", uma entidade que, juntamente com outros herdeiros das estrelas, podem até mesmo criar um novo universo. Teru tenta seduzir Meg a ajudá-la a criar um novo universo, oferecendo conhecimento ilimitado. Meg resiste a destruir aquele universo para começar outro e corta relações com Teru, por achar a proposta muito suspeita.

Além desta subtrama, depois de muito tempo, Hyoda recebe a visita de uma pessoa muito especial do seu passado, em um momento que novamente passava por uma crise existencial. Parece que não é somente o lugar onde você vive que é o culpado dos seus medos e frustrações, a resposta deve ser encontrada dentro de cada um. Hyoda é ainda envolvida em uma intricada rede temporal, uma vez que o tempo na nave e o da Terra não passam da mesma forma, além de outros elementos típicos da ficção científica.


Dentro desse contexto se desenvolve Space Ship EE, tratando-se basicamente de uma jornada de desenvolvimento pessoal de nossa protagonista Hyoda, além de abordar com maestria, outras subtramas interessantes, como no caso de Meg. Essa história curta é muito feliz em abordar vários temas que nos são muito caros, como o vazio da vida moderna, especialmente de quem possui uma rotina fixa. A solidão das grandes metrópoles e a melancolia crônica, além da busca pelos seus sonhos. E o mais importante, que a resposta não está lá longe nas estrelas, mas dentro de você. Space Ship EE emula bem os ideias do movimento superflat.

Provavelmente o que mais chama a atenção em Space Ship é a sua arte, que é bastante incomum, e foge do que tradicionalmente se espera de um mangá. Por Aya Takano ser uma artista plástica, em seus mangás ela acaba usando as técnicas que utiliza em suas pinturas, como desenhos fluídos, infantilizados e uma paleta de cores aquarelada. Você também não encontrará neste mangá linhas retas, tudo é curvilíneo e estilizado, nem mesmo o enquadramento do mangá escapou, tudo foi feito a mão, borrado e torto, o que em uma primeira visão pode parecer desleixo e falta de técnica, é o estilo consagrado por Aya Takano.


Os personagens também são bastante fluídos e carecem de linhas definidas, por vezes parecendo simples esboços que não passaram pela arte final, principalmente nas partes não coloridas do mangá. O mesmo vale para as diversas criaturas alienígenas, naves e maquinários. Aposto que muitos acharão sua arte feia, mas isso não é falta de capacidade da autora, é simplesmente seu estilo. Certamente é bastante diferenciado, mas para mim está longe de ser feio, é até bastante simpático e meigo, o que é até dicotômico se formos levar em consideração que é uma aventura de ficção científica bastante séria. E o fato das personagens quase sempre estarem seminuas não torna o mangá ofensivo ou apelativo de qualquer forma, pois logo percebe-se que não se trata de fan-service barato.

Como o mangá não é dividido em capítulos e o traço não é muito detalhado, é possível se confundir coma a leitura caso não prestemos a atenção devida. O enredo pode parecer simples, mas não o é, já que Space Ship EE envolve uma trama complexa com ataques psíquicos, um grande decurso temporal, aventuras e guerras no espaço e outras grandes questões da ficção científica. Além disso, como já disse acima, é uma grande história sobre como Hyoda buscou se propósito de vida e reconciliou-se consigo perante a vastidão do universo. O final foi competente em passar a resolução destas questões, não foi algo em aberto e nem que deixou grandes lacunas, Space Ship EE recebeu uma resolução sincera e eficiente.


Outro ponto alto do mangá que não posso deixar de falar são os extras presentes no final da obra, um completo compêndio de tudo que foi visto e as personagens que conhecemos em Space Ship EE. É um ótimo meio para se tirar alguma dúvida que porventura tenha restado depois da leitura do mangá. É algo realmente muito detalhado, possui até mesmo uma completa explicação sobre as raças alienígenas que apareceram no mangá, bem como toda a espécie de alimentos, veículos, cargos políticos, tecnologias, até um curioso mapa da curiosa nave espacial que é a Space Ship EE.

Space Ship EE é uma boa leitura para todos aqueles que gostam de uma boa ficção científica, mas que não abrem mão de uma narrativa tocante e emocional, que aborda importantes temas da vida, como o marasmo de nossa sociedade pós-moderna e a busca de um grande sonho. Também posso afirmar que é uma experiência bastante única ler essa obra, pois eu, particularmente, nunca encontrei nada parecido. Não se deixem levar pelo traço pensando que são somente rabiscos, tentem encontrar a mensagem por trás deles. Espero que tenham apreciado minha dica, e não deixem de comentar, seu feedback é muito importante para mim.


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