Tiger & Bunny: o heroísmo é comprável e a justiça é feita com as próprias mãos?

Tiger & Bunny pode parecer um anime tosco a princípio, que vai ser um mero anime de herói, mas, na verdade, o anime tem muito mais a oferecer...

"Todo homem tem um preço", diz o famoso ditado popular. Todos os homens comuns, certo? Afinal, os super-heróis que crescemos vendo através dos quadrinhos americanos e suas adaptações para TV e cinema geralmente são portadores de todas as virtudes relacionadas ao bem e incorruptíveis por natureza. Mas e se não fosse bem assim? Tiger & Bunny, um anime de 2011 com 26 episódios, surge numa onda, no mínimo peculiar, de paródias japonesas aos heróis americanos [1] e vem subverter alguns conceitos tradicionais do gênero. Na era do capitalismo global e das grandes corporações, poderiam até os heróis serem meros empregados? O heroísmo e o combate ao "mal" são grandes fachadas que servem apenas para render Ibope e vender produtos? E, afinal, os heróis fazem justiça ou não?  

"Quem paga a banda, escolhe a música": ou o heroísmo é demodê na era dos monopólios  

Já adianto que haverá spoilers, mas, por enquanto, apenas do primeiro episódio já que este delimita algumas coisas importantes sobre o mundo em que se passa o anime sem as quais eu não posso fazer minha análise. Enfim, Tiger & Bunny começa com um aparente reality show em que vários heróis perseguem um criminoso. O fato de haver vários heróis já é uma coisa dissonante considerando que, nos quadrinhos americanos, cada cidade costuma ter um só herói (Batman e Gotham, Super-Homem e Metropólis, etc) e mais ainda é o fato da perseguição ser televisionada com tanto entusiasmo. As coisas vão ficando ainda mais interessantes conforme descobrimos que os heróis ganham pontos e são classificados conforme seu desempenho em combater o crime – numa espécie de livre concorrência do heroísmo. 

O livre mercado dos heróis, porém, é um mundo não tão livre assim e cheio de artificialidades. A começar pela própria função do herói: supostamente este deveria salvar as pessoas, colocando a vida dos outros acima de qualquer coisa, como bens materiais e até da sua. Mas, se todo homem tem um preço, cada empresa tem um preço que pode pagar por esse homem. Quer dizer, se der prejuízo financeiro, não faça – mesmo que isso contradiga os princípios de um herói. Isso fica bem exemplificado na conversa entre um dos protagonistas, Wild Tiger, e seu agente. Ele quebra o vidro de um carro para salvar uma vida, mas é repreendido pelas despesas que gerará. O agente pergunta: "Você sabe quem te transformou em herói, não sabe?"; ao que ele responde envergonhadamente: "Nossos patrocinadores, senhor!" [2]. 

Wild Tiger se justificando ao seu empresário depois de quebrar alguns bens para salvar a vida de uma pessoa: simboliza bem um pouco do "espírito" do anime

Se isso por si só demonstra a não-liberdade dos heróis e as amarras que o dinheiro põem em suas ações lá para o final do episódio descobrimos algo ainda mais intrigante. O agente de Tiger revela que a empresa que os banca faliu e foi comprada por outra maior, concluindo que "Na próxima temporada, somente sete companhias terão heróis" [3]. É muito comum a ideia de que quanto mais opções, vamos ter melhores escolhas; que a concorrência entre empresas gera eficiência. Mas a realidade é que o capitalismo laissez-faire existiu por pouco tempo e foi substituído pelo capitalismo monopolista [4] e que às vezes achamos que estamos comprando de uma empresa diferente, mas ela é dona de várias marcas [5]. 

"A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais": ou o herói como um ator

Outra questão tão relevante quanto o heroísmo condicionado ao dinheiro é o herói condicionado à fama. No momento em que a empresa para qual Tiger trabalha é comprada, ele é colocado para trabalhar ao lado de Bunny, um herói pop-star. No entanto, os dois não se dão bem de início já que Tiger, embora também seja condicionado contra sua vontade pelo dinheiro, aproxima-se mais da ideia tradicional do herói virtuoso, enquanto Bunny está mais preocupado em aparecer. Mas não só ele, a maioria dos outros heróis também. Tiger é que é a exceção, na verdade. Por exemplo, outra heroína, Blue Rose, aparece com a maior pompa, enquanto Tiger está com o criminoso ao que ele pergunta: "você só quer ganhar mais números?" [6]. Apesar de fazer uma grande entrada, na hora de combater o criminoso ela foge e Tiger é quem luta. Então, ao mesmo tempo que a ganância pelo dinheiro e pelos pontos são aquilo que move a maioria dos heróis, o dinheiro pode limitá-los e igualmente a obsessão pela fama pode desviá-los do objetivo central de um herói. Em um paralelo, os liberais clássicos argumentam que a ganância é boa porque levaria o empresário a investir mais e produzir mais, mas, ao mesmo tempo, essa ganância é o que o leva a sabotar concorrentes, sonegar ou não se importar com o meio ambiente.

Esse embate de ponto de vistas a respeito do que constitui um herói também fica patente na discussão em que Tiger e Bunny têm sobre usar uma identidade secreta ou não [7]. Já que o heroísmo é um valor em si para o herói tradicional (Tiger), não há porque mostrar sua identidade. Não importa quem é o herói, o importante é o heroísmo. A máscara tira a pessoalidade do herói e é, por isso, que Tiger a defende e Bunny não. Afinal, para o segundo, o que é importante é aparecer para a mídia e para os fãs, logo não haveria sentido em fazer um heroísmo pelo qual ele não ganhasse o mérito. Tiger salva porque salvar é importante para o salvado, para a sociedade, não para ele. Bunny salva porque é importante para o salvador, para o indivíduo, para si.

O conflito geracional entre Tiger e Bunny é também um conflito de valores sobre o que é ser um herói: de um lado, aquele "invisível"; de outro, alguém que quer chamar atenção para sua imagem

Por fim, esse anseio de Bunny e da maioria dos heróis não poderia deixar de ser capitalizado pelas redes televisivas. Ao reality show dos heróis também pouco importa o heroísmo, mas o fato de que esse gera audiência. Logo no começo do episódio vemos a contradição entre um empregado do canal que está preocupado com os cidadãos, enquanto sua chefe só quer saber da audiência [8]. Tudo é um grande espetáculo que precisa ser dramatizado para dar Ibope. O crime e a violência não são apenas problemas a serem combatidos (e efetivamente o programa não faz nada para combatê-los), mas são mercadorias visuais para o telespectador. Não sei vocês, mas quando vi esse programa fictício eu lembrei na hora de programas como Brasil Urgente, apresentado por Datena, e Cidade Alerta, célebre na figura do agora finado Marcelo Rezende [9]. 

O mundo não é preto no branco, é um pouco mais cinza

As duas seções acima foram escritas somente a partir do primeiro episódio, mas a série irá mudar um pouco seu foco com os demais episódios. Irei discutir, de forma, geral o conceito de justiça que será debatido ao longo dela. Haverá spoilers, portanto, mas apenas de pontos casuais que, penso eu, não afetam quem ainda vai assistir a série. A série não muda drasticamente e não abandona os pontos que comentei acima, mas o Bunny e os outros vão aprendendo a serem heróis mais por altruísmo do que por aparência. Isso não impede de que a empresária de uma das heroínas peça para ela ser mais "feminina" [10], que os heróis sejam pressionados pelos seus empresários por estarem com pontuações decadentes [11], que Bunny ainda ache que ser herói é buscar pontos [12] ou que eles sejam forçados a aprender a dançar para capitalizar a sua popularidade [13].

No entanto, há uma grande virada a partir do sétimo episódio, quando surge uma espécie de "justiceiro" que mata os criminosos e não apenas os prende, como fazem os heróis. Ele até ganha apoio popular [12], ao estilo do que acontece com o "Kira" em Death Note, e as pessoas começam a questionar os "mocinhos" da estória. As empresas por trás dos heróis começam incentivá-los a fazerem "ações sociais", como visitar idosos, catarem lixo ou visitarem escolas para que a população não perca a confiança neles. Aí volta o interesse comercial, de uma maneira muito similar a empresas do mundo real que gostam de passar imagens de ambientalmente corretas ou de respeito às minorias [14]. No fim, elas só querem vender seu produto. 

Mas, voltando ao eixo central, o surgimento desse novo personagem, chamado Lunatic, traz nuances interessantes a série sobre o que é "justiça". Ele diz que a justiça dos heróis é falsa e ele é quem traz a verdadeira justiça. Essa questão, por si só, já é muito interessante, mas o bom é que ela não fica restrita a um personagem que, de certa forma, ainda é um vilão perante os heróis. O próprio Bunny, num primeiro momento, não se importa com a mortes dos criminosos [15]. Mas isso é explicável por seu passado: seus pais foram mortos por um criminoso não identificado. Não vou me posicionar se isso torna a questão justificável ou não, mas torna compreensível. Isso foi algo que já comentei na minha análise de Speed Grapher: não estou aqui para dar respostas. O importante, de qualquer forma, é entender que as delimitações entre o que é "bom" e o que é "mau" são tênues. 


Lunatic, um personagem que torna as coisas mais interessantes, surge no anime como um anti-herói que vem questionar o conceito de justiça jurídico-formal dos heróis e trazer uma justiça um pouco mais pautada na moral (vide a noção de "pecado" aqui, por exemplo)

Se as coisas já estavam bem complexas ao sabermos tudo isso, quando o passado de Lunatic é revelado as coisas ficam ainda mais interessantes. Bom, agora vão spoilers "fortes" do episódio 16: ele era filho de um ex-herói que acabou como um alcoólatra que agredia a mulher. Algo evidentemente deplorável, mas o que levou esse herói a isso? É dito que a pressão para manter seu desempenho e uma aparência perante o público era tanta que isso levou-o a sua dependência ao álcool. Novamente, não é uma defesa, é apenas uma tentativa de compreender. Mas, tudo bem, o que acontece é que numa de suas agressões, seu filho acaba o matando, ironicamente, seguindo o conselho do próprio pai de que o mal deveria ser eliminado. As coisas ficam mais nebulosas ainda já que a mãe vê o filho como um "monstro" por tal ato e acha que o marido estava passando apenas por uma fase. Quem está certo? Quem está errado? Não sou eu quem vai julgar. 

O gran finale do anime vai jogar mais lenha nesse assunto: no episódio 19, o tutor de Bunny, Maverick, revela que foi ele quem matou seus pais quando eles descobriram seu esquema para aumentar a audiência da "Hero TV". Como os crimes não eram muito atrativos ao público, ele se uniu a uma facção criminosa, "implantando" as cenas perfeitas para o heroísmo brilhar. Ou seja, o grande império dos heróis, o senso de justiça e bondade, foi todo construído, na verdade, a partir de assassinatos gratuitos e uma trama muito sinistra. Por mais que os heróis cheguem a bela conclusão de que "Nós somos heróis porque somos humanos com corações" [16], Maverick não deixa de ter razão ao dizer que foi seu plano que permitiu a consolidação dos heróis como símbolos relevantes para a cidade.

Considerações finais

Se Tiger & Bunny é uma crítica implícita ao capitalismo e como ele pode corromper valores morais (no caso do anime, o heroísmo, o altruísmo, etc.)? Embora eu seja muito tentado a dizer que sim, obviamente que não é. Quer dizer, uma das coisas que chamou bastante atenção para o anime na época de seu lançamento é o fato de que os super-heróis do anime são patrocinados por marcas reais. Não achei nenhuma fonte que diga que essas marcas efetivamente bancam o anime ou se os criadores só colocaram para dar uma autenticidade aos personagens, mas acho improvável pensar que alguém divulgaria uma marca de graça. De todo modo, intencionalmente ou não, o anime reflete algo de nossa sociedade contemporânea e acho que a discussão é válida nesse sentido. Me digam vocês se é apenas delírio meu ou se conseguem enxergar algumas de minhas colocações. 

A cena que mais se repete no anime (por ser uma transição para o intervalo em todo episódio) é uma das heroínas fazendo a propaganda da marca que a patrocina

O anime também propõe uma discussão sobre justiça, bem e mal e como esses conceitos se entrelaçam na realidade. Há ainda sub-temas como a relação pai-filha de Tiger com Kaede (digno de algumas lágrimas, confesso rs) e a amizade e a confiança entre Tiger e Bunny. Penso que é válido pensar as possíveis utilizações da ciência quando os androides criados pelos pais de Bunny para proteger os humanos passam a ser usados exatamente contra os heróis. Enfim, apesar de não parecer um anime sério a primeira vista (e os materiais de divulgação da série não ajudam muito nesse sentido, eu diria rs), é possível perceber uma grande discussão sobre justiça e é possível pensar diversas coisas a partir de Tiger & Bunny. Se, além disso, procura uma série com ação e um ótimo ritmo, assista esse anime. 


Notas
[Nota 1: Não sei dizer se isso já pode ser considerado uma "tendência" mas estou me referindo aos lançamentos quase sequenciais dos animes Tiger & Bunny (2011), Samurai Flamenco (2013), One-Punch Man (2015) e Boku no Hero Academia (2016), sendo que o webcomic de One-Punch Man é de 2009.]

[Nota 2: A partir dos 12:08, segundo o player do Anima Curse (https://animacurse.moe/?p=25488)]

[Nota 3: A partir dos 17:36, segundo o player do Anima Curse]

[Nota 4: Bom, que essa afirmação vai deixar alguns liberais fulos da vida, isso vai. Mas é inegável esse fato: o laissez-faire, como concebido pelos pensadores clássicos, durou muito pouco e hoje o que domina são grandes conglomerados. Não me aprofundarei em detalhar o termo "capitalismo monopolista" e na história do capitalismo, mas quem quiser ser aprofundar recomendo: NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo, Cortez, 2006.]

[Nota 5: Sobre a quantidade de empresas que dominam o mercado mundial, recomendo muito esse vídeo: https://www.ted.com/talks/james_b_glattfelder_who_controls_the_world?language=pt-br. Para aqueles que não se convencem só com um vídeo, como eu, podem consultar as pesquisas de Stefano Battiston (http://www.bf.uzh.ch/cms/en/battiston.stefano.html?section=publications) e Stefania Vitali (https://ideas.repec.org/f/pvi269.html)] 

[Nota 6: A partir dos 8:19, segundo o player do Anima Curse]

[Nota 7: A partir dos 11:06, segundo o player do Anima Curse]

[Nota 8: A partir dos 4:38, segundo o player do Anima Curse, ocorre o seguinte diálogo:
- "O que faremos", pergunta o empregado. "É melhor não interferir com-"
- "Você está tentando arruinar meu programa?”, replica a chefe
- "Mas a segurança dos cidadãos...", balbucia o empregado]

[Nota 9: A relação entre mídia e violência – e como esses programas ajudam a sustentar certas políticas – é amplamente debatida nas Ciências Sociais. Por exemplo, David Altheide tem um "trabalho importante sobre o discurso do medo na mídia", argumenta que "as notícias sobre crime e sobre terrorismo sustentaram as políticas de guerra às drogas e da guerra no Iraque e que a intensificação das notícias que envolvem situações de medo e estimulam as pessoas a abrir mão de direitos civis e de liberdades, em favor de políticas de controle" (RAMOS, Silvia. Violência, crime e mídia. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 182). 

Além disso, paradoxalmente, esses programas que são contra os "fora da lei", infringem várias leis. Um estudo de 2016 mostra que, em um mês, 28 programas exibiram 1936 narrativas que violavam leis, como casos de exposição indevida de pessoa; de desrespeito à presunção de inocência;  de incitação ao crime e à violência; de de discurso de ódio e preconceito    (http://natelinha.uol.com.br/noticias/2016/01/29/polemicos-programas-policiais-violam-12-leis-brasileiras-em-um-mes-96052.php)]

[Nota 10: Episódio 9]

[Nota 11: Episódio 14 e 15]

[Nota 12: Episódio 8]

[Nota 13: Episódio 15]

[Nota 14: Pesquisem sobre "marketing verde", "pink money", etc.]

[Nota 15: Episódio 6]

[Nota 16: Episódio 23]


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