Qualia the Purple - Explorando o lado mais bizarro da física.



Qualia é um termo usado na filosofia que define as qualidades subjetivas das experiências mentais conscientes, como quando experimentamos a vermelhidão do vermelho, ou o doloroso da dor. Eu gostaria de começar meu texto dando uma breve introdução do que seria Qualia the Purple, mas preferi dar o significado do conceito filosófico que dá nome a série, pois estou seriamente impossibilitado pela natureza deste mangá tão peculiar de descrevê-lo em poucas palavras. Em resumo, o que parece ser uma história banal sobre garotas no colegial e habilidades especiais, se transforma em um emaranhado de reviravoltas tão complexas como a própria física quântica, tanto é que é justamente esse ramo da física que empresta suas mais excêntricas teorias para construir o universo de Qualia the Purple.

Qualia the Purple, ou Murasakiiro no Qualia, é um mangá baseado na visual novel de mesmo nome, de autoria de Hisamitsu Ueo, sendo sua obra de maior destaque, publicada em julho de 2009 em um volume único. O mangá foi publicado de 27 de janeiro de 2011 até 27 de agosto de 2013, totalizando 18 capítulos e três volumes. O mangaká que ficou responsável pela adaptação em mangá, Shirou Tsunashima, foi o mesmo que fez as ilustrações da visual novel, além de Qualia the Purple, ele possui outros trabalhos, como Jinki:Extend, que recebeu uma adaptação em anime no ano de 2007. Qualia the Purple foi publicado na revista Dengeki Daioh, a mesma de obras famosas como Azumanga Daioh e Toradora.


Mesmo que não faça completamente jus ao que é Qualia the Purple, sua sinopse oficial é basicamente a seguinte: Hatou Manabu, apelidada de Gaku, possui uma amiga bastante esquisita chamada Marii Yukari. Yukari possui olhos roxos, o que é bastante bizarro, mas isso não é o mais estranho sobre Yukari, ela possui um jeito único de ver o mundo, para ela, todos os seres vivos são robôs. Sim, é isso mesmo, ela não consegue diferenciar uma pessoa de um mecha, todos são iguais para ela, com circuitos, partes destacáveis, acessórios, etc. Essa maneira peculiar de enxergar o mundo já gerou muitos problemas para Yukari, como perder sua melhor e única amiga durante a infância. Contudo, ela insiste que o que ela vê é a verdade, e isso possibilita que ela veja as habilidades dos outros, como perceber que uma colega de turma consegue acertar nas previsões do tempo.

Gaku pensa que Yukari é somente uma garota estranha, mas com o passar do tempo, tanto sua amizade por ela cresce, como consegue perceber que ela possui talentos espantosos e inesperados, ela consegue simplesmente consertar qualquer coisa, desde uma TV velha como até partes de corpos humanos, até mesmo a polícia vai até ela para ouvir seus conselhos e solucionar os crimes mais difíceis. Tudo isso faz Yukari e seus olhos roxos serem únicos no mundo. Contudo, no poder de Yukari reside uma importante distinção que fica a critério do leitor desvendar. Para Yukari os humanos são insignificantes como meros objetos, ou os objetos parecem para ela tão importantes como os seres humanos?


O mangá se divide em duas partes completamente distintas, cada uma com seus prós e contras. A primeira parte do mangá, composta por alguns capítulos, nos mostra algo como um típico mangá escolar, com uma boa dose de comédia e algumas insinuações de yuri. Depois de uma virada no enredo, a trama se torna algo muito mais denso e complicado de seguir, talvez seja mais fácil de entender para quem já tiver tido algum contato com as estranhas teorias da física quântica, como a existência de universos paralelos, o gato de Schrödinger, etc. A nossa protagonista acaba adentrando numa aventura que quebra todas as barreiras da física clássica.

Vou me estender um pouquinho sobre as duas fases distintas do mangá. No que concerne a primeira parte do mangá, até ai, nada de novo no front, é o típico mangá escolar. As personagens principais ficam amigas, a tomboy Gaku e a esquisitona que vê tudo como robôs e é apaixonada em montar Gunplas (aqueles miniaturas de mechas da série Gundam), tanto é que o encontro das duas é bastante típico desse tipo de mangá, as duas acabam tropeçando e uma rouba o primeiro beijo da outra.  

A típica cena do beijo por acidente que marca o encontro das duas protagonistas.

Esse é um mangá muito complicado de falar sobre sem dar nenhum spoiler relevante, é daquele tipo de obra que não dá para falar sobre o que ela é boa sem contar o que a faz boa, como no caso de Puella Magi Madoka Magica, tanto é que ambas as obras são bastante parecidas, como terei o prazer de discorrer mais para frente. Então façamos assim, desde já vocês estão avisados que a partir de agora darei uma ou outra informação do enredo, então estejam avisados, ok? E claro, avisarei quando terminar de dar os spoilers.

Os spoiler começam aqui

Depois da amizade das duas se estreitar mais e mais, principalmente pelo fato de Gaku não se importar com a estranheza de Yukari, somos introduzidas a outra personagem importante, Nanami Tenjou, uma antiga amiga de infância de Yukari, que depois de um evento muito peculiar, passou a ser sua "rival", praticando bullying com a menina rotineiramente, com isso, Gaku passa a saber mais do passado obscuro da amiga. Mas nem só de comédia escolar e insinuações de romances vive Qualia the Purple, após este estreitamente da amizade, Gaku acaba frequentando a casa da Yukari.

Yukari e seu mais fiel gunpla.

Por estar conhecendo mais a vida da Yukari, Gaku se envolve em situações perigosas, como ser sequestrada por uma assassina em série que afirmava ter o mesmo "olho" da Yukari, mas acaba se mostrando apenas uma maluca com síndrome de grandeza. Esse evento é o ponto de virada da primeira parte do mangá para a segunda, quando Gaku tem seu braço decepado concertado com o uso de seu celular, e depois de um tempo, Yukari acaba morrendo em condições bem esquisitas. Quem poderia imaginar que implicações esses acontecimentos acarretariam futuramente? É deste ponto que começa a segunda parte do mangá, que como eu já havia dito inicialmente, é ficção científica pura em sua melhor forma!

Demora um pouco para percebermos aonde o enredo quer chegar, mas temos uma ideia quando a Gaku começa a receber chamadas de celular de suas outras cópias de universos paralelos ou de possibilidades não utilizadas na trama do universo, dependendo da teoria quântica abordada. A loucura não para por aí, visando salvar Yukari, Gaku embarca em uma viajem visitando as mais diversas possibilidades possíveis. Seria leviano apenas dizer que ela volta no tempo para tentar salvar Yukari, visto que no universo da física quântica, essa questão de viajem no tempo seria furada, já que tudo ocorreria de uma forma diferente, e Gaku apenas estaria escolhendo vivenciar outra teia de acontecimentos, como se estivesse jogando uma visual novel.

Exemplo de teoria científica abordada no mangá.

É nesse aspecto que Qualia the Purple fica muito parecido com Puella Magi Madoka Magica, tanto Gaku como Homura desejavam salvar a todo custo suas melhores amigas/amadas, sendo elas Madoka e Yukari, e ambas utilizaram um princípio semelhante, revivendo a linha do tempo diversas e diversas vezes, buscando uma brecha onde poderiam salvá-las, mas tudo acabava saindo sempre errado. Enquanto Madoka virava a bruxa mais poderosa, Yukari sempre acabava morrendo, pois mesmo que Gaku eliminasse os seus assassinos, apareciam outras pessoas querendo matá-la, ou ou ela mesmo perdia sua vida de outra maneira.

Tanto Gaku como Homura estavam destinadas a realizar um "trabalho de Sísifo", expressão oriunda da mitologia grega, onde o rei Sísifo, tentando enganar a morte, foi punido pelo deus Hades, a todos os dias tentar carregar uma pedra enorme até encima de um monte, contudo, a pedra sempre acabava rolando de volta. Essa expressão se refere aqueles trabalhos ou iniciativas que parecem sempre destinadas ao insucesso, como no caso das heroínas acima mencionadas. Contudo, não há que se dizer que Qualia the Purple é uma cópia de Madoka, já que a novel foi publicada um ano antes do anime.

Qualia the Purple também há sua dose de gore.

Gosto particularmente da maneira criativa que o autor trabalhou a temática dos diversos universos paralelos/possibilidades quânticos, de um jeito muito mais criativo do que Madoka, mesmo que acabe pecando um pouco em coerência narrativa. Destaque para a linha de eventos onde Gaku se torna um garota mágica quando busca um universo onde a magia seria possível, com o intuito de salvar Yukari. Também há situações que Gaku usa e abusa psicologicamente e fisicamente de Alice, outra personagem de grande relevância ao enredo. A própria solução final de Gaku foi interessantíssima, pois admitir sua insuficiência intelectual e criar um império científico para desenvolver a teoria de tudo e virar uma espécie de existência plena incomunicável com o mundo senciente que pôde observar o mundo real desde os primórdios da existência terrena (ufa!!) não é para qualquer um!

Interessante como o mangá construiu sua estrutura narrativa, é como se as duas partes que citei anteriormente fossem destacáveis uma da outra e contassem duas histórias distintas. Primeiramente, o mangá de comédia e romance com poderes sobrenaturais, algo leve e descompromissado, e a segunda parte, um thriller alucinante de ficção científica. O mais curioso é que o final do mangá termina justamente como começou, fechando um ciclo, e não seria de todo errado dizer, que todo o meio do mangá poderia ter sido retirado que a obra ainda faria sentido como um mangá escolar, mas se este fosse o caso, seria uma obra imensamente mais fraca. E para finalizar, no fim das contas, o mistério do porque Yukari vê todo mundo fica a critério do leitor interpretar como quiser, levando em considerações as teorias abordas na série.

Fim dos spoilers.

Não é uma piada, há uma garota mágica no mangá e a situação é séria!

Qualia the Purple possui um método narrativo no qual eu gostei muito. Em obras onde o autor se propõe a explanar teorias científicas, sempre há o risco do mangá se tornar excessivamente massante em alguns pontos, esse é o problema que vejo em mangás como Ghost in the Shell, no qual a ação é sempre entrecortada por explanações científicas longas, o quabrando o ritmo da leitura, o autor de Ghost in the Shell até afirma que seria uma boa ideia ler todas as notas de rodapé ao final da leitura, admitindo a grande quantidade de informação passada. Creio que os autor e o desenhista de Qualia the Purple encontraram um jeito de driblar esse problema.

No mangá, há capítulos inteiros dedicados para explanações científicas, onde as personagens conversam francamente sobre os mais diversos pontos da física quântica e da filosofia. Você pode até afirmar que um capítulo inteiro de informação seja algo chato, mas é muito melhor dedicar uma parte da obra exclusivamente para isso, do que ficar cortando as cenas de ação pelo meio para explicar conceitos como o do gato de Schrödinger ou da Interpretação de Copenhague sobre a física quântica né? Esse tipo de recurso deixa o mangá muito mais fluído quando ele deve ser.


Mesmo assim, Qualia the Purple não está livre de críticas quando ao seu método narrativo. Eu particularmente não me importo com o que vou dizer, mas aposto que é algo que irrita muita gente. Qualia the Purple é confuso! São muitas teorias científicas, mundos paralelos, reviravoltas quânticas e o diabo a quatro, e no final do mangá você pode se pegar perguntando para si: "Que merda foi essa que eu li?". Como eu aprecio esse tipo de coisa, não fiquei incomodado.

Contudo, para aqueles que apreciam teorias científicas e filosofia esse mangá é um prato cheio. A título de exemplo, o próprio nome Qualia é oriundo da filosofia, como eu já havia dito no primeiro parágrafo do texto, e que combina muito com a protagonista que vê todos como robôs. Outra figura é a do zumbi filosófico, sendo que a Yukari poderia ser considerado um, esse ser hipotético é idêntico a um ser humano normal, exceto por não ter experiência consciente, a "qualia". Quando um zumbi filosófico é espetado com um objeto afiado, ele não sente qualquer dor, mas age como se sentisse, sendo apenas uma imitação.

Exemplo de doideira do mangá que extrapola o nível científico.

Não vou me adentrar aqui nos meandros da física quântica, que é um ramo da física muito complexo, e como leigo, posso acabar falando muita abobrinha. E se eu fosse me estender em cada teoria ou conceito abordado por Qualia the Purple, o texto ficaria imenso. Mas para aguçar a curiosidade de vocês, o mangá aborda em tese o cerne da mecânica quântica, abordando duas interpretações distintas que possibilitaram as viagens em diversas realidades alternativas realizadas pela protagonista, uma sendo a interpretação de Copenhague, que afirma que até observarmos algo, há incontáveis possibilidades coexistindo simultaneamente (vide o Gato de Schrödinger), e partir da visualização uma das possibilidades se traduz como real.

Outra interpretação é a dos universos paralelos. Esse conceito de várias realidades coexistindo simultaneamente é bastante comum de se ver na ficção, nos mais diversos multiversos. Assim sendo, para cada possibilidade distinta há um universo distinto. Ter a capacidade de transitar por esses universos é como viajar no tempo, já que pelo ponto de vista da física quântica, os diversos universos paralelos não existem simultaneamente, bastando escolher onde se quer ir. Outro conceito bastante interesse presente em Qualia the Purple é o da Teoria de Tudo, que é basicamente uma teoria hipotética que englobaria em uma só estrutura teórica, todos os fenômenos físicos existentes, o que conferiria à humanidade possibilidades ilimitadas.


Mas já adianto que não se deve esperar um rigor científico em todos os momentos do mangá, isso já se mostra evidente com a própria capacidade da Yukari fazer operações que mesclam partes de pessoas com objetos. A própria explicação dos poderes de Yukari fica em segundo plano, apenas sendo levantadas as teorias acima descritas, como a do zumbi filosófico. A própria Gaku extrapola em muito o aceitável até mesmo pela física quântica nos moldes conhecidos atualmente. O ponto é que mesmo que nem tudo seja cientificamente comprovado nem embasado em pesquisas sérias, as teorias abordadas existem mesmo e servem como um meio de aprendermos um pouco mais sobre um dos ramos mais misteriosos da ciência.

Outro tema importante e central em Qualia the Purple é a inevitabilidade de certas coisas, ou melhor dizendo, que o destino de alguém muitas vezes é responsabilidade da própria pessoa e não a imposição de uma inteligência divina, e mesmo que você faça o que tiver no seu alcance e até além, e que isso inclua viajar em universos paralelos e quebrar as barreiras no universo, se a própria pessoa não quiser se salvar, todo o seu esforço é inútil. O melhor é sempre entender os motivos de quem queremos prestar um auxílio e não apenas impor nossas vontades. Além de ser uma aventura científica maluca, Qualia the Purple dá uma lição valiosa.

Yukari não é a única pessoa talentosa da obra.

Os personagens são em si bem desenvolvidos, Gaku teria potencial para se tornar uma das protagonistas mais icônicas dos mangás, pena que Qualia the Purple não é tão famoso por aqui. Mas não só ela merece destaque, Yukari também é uma personagem riquíssima, assim como Alice e sua capacidade de resolver cálculos matemáticos utilizando desenhos. A ex-amiga de infância da Yukari, Nanami Tenjou também é uma boa coadjuvante, servindo várias vezes como gatilho para o autor explanar as teorias científicas e filosóficas desta obra.

Falando um pouquinho da arte. Bem, ela não chama muito a atenção e sem sombra de dúvidas Qualia não será lembrado por ela. É ok, e é isso. O character design é bem padrão, mas isso não me impediu de gostar do visual das personagens, pelo menos o autor do mangá é bastante criativo, pois o visual de mahou shoujo da Gaku me chamou bastante a atenção. Fora isso, não há muito que se falar, pois realmente a arte não é um dos pontos forte de Qualia the Purple, a não ser o visual dos Gunplas montados pela Yukari, que ficaram bem bonitos e criativos.

Gostei especialmente desta sequência de quadros, os quais mostram o desespero de Gaku.

Qualia the Purple é um mangá ambicioso, está na tênue linha de ser considerado uma obra "chata" e excessivamente pretensiosa. Porém, para alguns, ele já ultrapassou essa linha, sendo um mangá 8 ou 80, ou você o ama ou o odeia, difícil possuir uma posição neutra em relação às aventuras de Gaku e Yukari pelo universo da física quântica. Uma das críticas mais comuns é que o anime possui um potencial muito grande, bem como pelo tema abordado, que é interessantíssimo, mas isso somente não justificaria uma execução falha. Não discordo totalmente, o mangá é realmente um pouco confuso e desleixado com a própria narrativa, deixando alguns furos, mas para mim isso não desqualifica seus vários pontos positivos.

Assim sendo, esse mangá não é do tipo que eu recomendaria para todo mundo ler, pois é uma experiência bem diferente do que se está acostumado, até é interessante, se não surpreendente, o fato de ter sido publicado em uma revista shounen. Qualia the Purple não é perfeito, mas é algo memorável, eu facilmente desejaria dar mais uma lida para ver se eu consigo entender melhor os vários saltos que a obra dá, além de me aprofundar um pouco mais no riquíssimo campo de estudo que é a física quântica. para finalizar meu texto, posso dizer com segurança que este é um mangá para os curiosos!


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