Revolutionary Girl Utena: Matar o Príncipe ou tornar-se um?
As duas protagonistas, Utena Tenjou e Anthy Himemiya |
Hoje iremos conversar sobre Revolutionary Girl Utena, anime conhecido por muitos, mas visto por poucos. Apesar da baixa popularidade, é defendido fortemente por aqueles que o assistiram, principalmente devido à enorme quantidade de conteúdo que traz, tanto artístico quanto filosófico.
*Por simplicidade, Utena em itálico irá se referir ao anime, e Utena à personagem principal
Mas mesmo assim muitos que conhecem tal fama simplesmente não assistiram o anime! A isso pode-se associar tanto seu tamanho(incríveis 39 episódios!) quanto à descrição vaga da obra, da qual se sabe ser "filosófica" mas não ao certo quais temas são discutidos nesta. Pois bem, agora que as apresentações foram feitas, é hora de discutir com detalhes o que torna Utena tão bom e porque você deveria assisti-lo.
Utena influenciou várias obras futuras, dentre elas o cartoon americano Steven Universe[4] |
Como já foi dito, possui 39 episódios, sendo relativamente longo, o mangá é composto por 5 volumes, o filme cerca de 80 minutos, e o musical menos de uma hora. As tramas de cada uma destas produções são similares, e tem o elenco praticamente igual, mas o anime e o filme são com certeza os campeões em profundidade Pessoalmente, acredito que a experiência seja melhor começando do anime, para em seguida assistir as outras produções. Neste texto, o foco será o anime, com algumas menções feitas ao filme.
Além do filme e do anime, foram produzidos também um mangá e um musical. Os personagens e a premissa são as mesmas em todas as obras, mas o desenvolvimento não. |
Gostaria de citar aqui uma estória presente no anime, sem spoilers. Em certo episódio, uma das personagens comenta que sua irmã certa vez caiu em um rio e foi salva por um rapaz, mas ela acabou esquecendo o nome de seu salvador. Ela comenta que achava a irmã fria por o ter esquecido, mas que acabou se esquecendo também. Acontece que tal estória foi contada no meio de uma das situações mais tensas do anime, e aparentemente não possuía relação alguma com o que estava ocorrendo. Logo após, outra personagem, confusa com a estória que acabara de ouvir, pergunta à primeira: "Mas por que você contou essa estória?".
Isso expressa um conceito importantíssimo: estórias são contadas por algum motivo, normalmente para trazer informação ou emoções (e algumas ganhar dinheiro). No caso de Utena, a estória contada possui diversos elementos que de início não fazem sentido, mas que definitivamente possuem um motivo para estar ali, pois os produtores não os teriam inserido sem motivo algum. Assim, pode-se constatar que Utena é uma alegoria, isto é, ela passa uma estória por trás da estória original, tentando passar mensagens ocultas ao expectador num primeiro momento, para revelar um sentido maior.
Dito isto: a obra possui uma característica muito interessante: para um mesmo expectador, ela nunca é a mesma, pois possui diversos detalhes que só podem ser percebidos depois das revelações ocorridas no final dela. Assim como Lain e Evangelion, Utena nunca é o mesmo anime, e a cada vez que é assistido, podem-se perceber novas coisas, e interpretar os mesmos acontecimentos com uma visão totalmente diferente, devido ao fato de a maneira como as personagens são vistas mudar drasticamente conforme são feitas mais e mais revelações sobre o passado destas.
Para se ter uma ideia, o final do anime é debatido em comunidades online até hoje (porém com menor proporção que Evangelion). A existência de tais grupos[5] é um indicador da atemporalidade do anime, cuja mensagem persiste até os dias de hoje, e exibe o forte caráter cult desta obra.
A arte do anime também é memorável, tendo herdado o visual do mangá The Rose of Versailles (do japonês Berusaiyu no Bara, que em português seria "A Rosa de Versalhes"). O referido mangá se passa durante a Revolução Francesa, sendo recheado com elementos de tal cultura. Utena herdou de tal produção o ambiente: construções clássicas com arquitetura francesa, e também a forte presença de rosas, associadas com o "clima" francês. Além disso, em ambas as franquias as personagens não possuem o típico design loli dos animes modernos, tendo tipo físico menos kawaii, com corpos em formato mais fino e olhos menos acentuados.
Além do visual diferente do padrão, a trilha sonora também é chamativa. Como em todo anime, temos músicas para as cenas cotidianas, as quais lembram o estilo clássico e agradam aqueles que gostam de um bom piano. Porém, as mais memoráveis de longe são as músicas com letra, as quais fazem uso pesado de figuras de linguagem, principalmente as dos duelos, cuja dose de paradoxo e oposição de ideias aumenta exponencialmente até o clímax da batalha, tornando-as muito enigmáticas. Mas a que todos os que assistirem o anime irão se lembrar com certeza é a Zettai Unmei Mokushiroku, presente antes dos duelos:
Repare que até agora discutimos apenas o "perfil" da obra, sem tocar ainda em sua estória, a qual traz uma proposta um tanto diferenciada:Na verdade, essa não é a primeira vez que Utena aparece no blog, pois a obra já fez uma "participação especial" no artigo Gnósticos Sonham com Robôs Gigantes? (cuidado, este texto tem spoilers) |
Isso expressa um conceito importantíssimo: estórias são contadas por algum motivo, normalmente para trazer informação ou emoções (e algumas ganhar dinheiro). No caso de Utena, a estória contada possui diversos elementos que de início não fazem sentido, mas que definitivamente possuem um motivo para estar ali, pois os produtores não os teriam inserido sem motivo algum. Assim, pode-se constatar que Utena é uma alegoria, isto é, ela passa uma estória por trás da estória original, tentando passar mensagens ocultas ao expectador num primeiro momento, para revelar um sentido maior.
Dito isto: a obra possui uma característica muito interessante: para um mesmo expectador, ela nunca é a mesma, pois possui diversos detalhes que só podem ser percebidos depois das revelações ocorridas no final dela. Assim como Lain e Evangelion, Utena nunca é o mesmo anime, e a cada vez que é assistido, podem-se perceber novas coisas, e interpretar os mesmos acontecimentos com uma visão totalmente diferente, devido ao fato de a maneira como as personagens são vistas mudar drasticamente conforme são feitas mais e mais revelações sobre o passado destas.
Para se ter uma ideia, o final do anime é debatido em comunidades online até hoje (porém com menor proporção que Evangelion). A existência de tais grupos[5] é um indicador da atemporalidade do anime, cuja mensagem persiste até os dias de hoje, e exibe o forte caráter cult desta obra.
A arte do anime também é memorável, tendo herdado o visual do mangá The Rose of Versailles (do japonês Berusaiyu no Bara, que em português seria "A Rosa de Versalhes"). O referido mangá se passa durante a Revolução Francesa, sendo recheado com elementos de tal cultura. Utena herdou de tal produção o ambiente: construções clássicas com arquitetura francesa, e também a forte presença de rosas, associadas com o "clima" francês. Além disso, em ambas as franquias as personagens não possuem o típico design loli dos animes modernos, tendo tipo físico menos kawaii, com corpos em formato mais fino e olhos menos acentuados.
Além do visual diferente do padrão, a trilha sonora também é chamativa. Como em todo anime, temos músicas para as cenas cotidianas, as quais lembram o estilo clássico e agradam aqueles que gostam de um bom piano. Porém, as mais memoráveis de longe são as músicas com letra, as quais fazem uso pesado de figuras de linguagem, principalmente as dos duelos, cuja dose de paradoxo e oposição de ideias aumenta exponencialmente até o clímax da batalha, tornando-as muito enigmáticas. Mas a que todos os que assistirem o anime irão se lembrar com certeza é a Zettai Unmei Mokushiroku, presente antes dos duelos:
A letra desta música é muito misteriosa... o que diabos ela quer dizer?
"Era uma vez, há muito tempo atrás, uma princesinha, e ela estava muito triste, porque seu pai e sua mãe haviam falecido. Diante dela, apareceu um príncipe viajante, cavalgando em seu cavalo branco. Ele tinha um porte suntuoso e um sorriso gentil. O príncipe a envolveu em um abraço com cheiro de rosas, e gentilmente limpou as lágrimas de seus olhos. "Minha pequena" ele disse "que suporta sozinha tamanha dor. Nunca perca esta força e nobreza, mesmo quando você crescer. Eu lhe presenteio com este anel, para que lembre-se de mim quando nos encontrarmos novamente. Um dia, ele a guiará até mim". Talvez o anel que o príncipe a deu fosse um anel de casamento. E assim ele se foi, mas a impressão que deixou na princesa foi tão forte, que ela jurou um dia ser como ele, um príncipe... Mas será que isso foi uma boa ideia?"
A princesa resolveu se tornar um princípe! |
Utena não é chamada de revolucionária à toa, pois, como podemos ver, a própria premissa da série rompe com a ideia da protagonista feminina frágil que tem que ser protegida por um homem, em vez disso exibindo a determinação da jovem de se tornar nobre como seu salvador, ao invés de apenas ser protegida. Entretanto, o conceito de revolução em Utena é muito mais complexo do que isso, e essa tendência a romper com costumes se encontra fortemente presente na totalidade da obra.
Um ponto a se ressaltar é que, embora várias pessoas pensem que Utena se trata de um anime do gênero yuri(romance entre garotas) devido ao aparente romance entre as duas protagonistas, tal afirmação é incorreta. O relacionamento delas não é nem de longe o foco do anime, e ocorre natural e lentamente, sendo o foco apenas nos episódios finais. Na verdade, a obra trata de relacionamentos gerais entre pessoas, tanto amorosos quanto afetivos. Cada personagem tem uma situação diferente: uns tem amor por membros da família, outros adoração por uma pessoa, existe um romance lésbico bem mais explícito, e também dicas vagas de encontros homossexuais entre dois amigos.
A presença de relacionamentos menos convencionais no anime nada mais é do que mais um aspecto do tema geral deste: revolução. Tal conceito pode ser entendido como uma negação da tradição e dos costumes. Nesse sentido, o anime deve ser elogiado por trazer tal tema à tona em uma sociedade conservadora como a japonesa, mesmo que de forma não tão explícita. Como estamos falando de amor do mesmo sexo, vale lembrar que recentemente nossa nova colaboradora postou um texto recomendando um mangá sobre Boys Love (amor de garotos), vale a leitura.
Uma fan-art da famosa imagem de propaganda feminista com Utena.
É difícil não relacionar o anime ao tema da
libertação feminina da opressão da sociedade. Outra produção
com tal temática já foi analisada no blog: Belladonna of Sadness |
A trama se inicia quando uma de suas amigas, Wakaba, se interessa pelo egocêntrico Saiyonji, membro do conselho estudantil, e lhe escreve uma carta de amor, mas ele ignora os sentimentos da garota e joga a carta fora. Alguém a encontra e a cola no mural da escola, humilhando a moça. Enfurecida, Utena vai tirar satisfações com o playboy, que além de ter desprezado Wakaba, também tem o hábito de maltratar sua namorada, Anthy Himemya, contribuindo para aumentar a ira de nossa heroína.
Ao ver o anel de Utena, Saiyonji a desafia para um duelo de espadas na arena atrás da escola, com o intuito de resolver a disputa. Ela leva uma espada de madeira para a competição, não esperando se tratar de algo muito intenso. Entretanto, ao chegar ao local, ela é surpreendida por duas coisas: um castelo gigante invertido que flutua sobre a arena, bem como com o fato de Saiyonji tirar uma espada do peito de Anthy para a batalha, coisas que ele diz serem apenas miragens, "truques de luz".
É de se estranhar ver um castelo invertido flutuando no céu! |
Vence o duelo aquele que conseguir tirar a rosa do peito do oponente. A disputa se inicia, e Utena se surpreende com o fato de a espada de Saiyonji ser real, e ele a usa para cortar a arma da garota em duas partes. Entretanto, mesmo com a arma danificada, nossa heroína parte para cima do oponente, e consegue arrancar-lhe a rosa, tornando-se a vencedora. Entretanto, como prêmio inesperado, Utena ganha a posse de Anthy, que passa a ser sua "noiva" dali em diante, pois ela é conhecida como a Noiva da Rosa(Bara no Hanayome) e pertence ao atual campeão dos duelos realizados na arena.
Apesar de estranhar a situação, Utena aceita a "posse" de Anthy, pois acredita ser melhor para ela do que seu proprietário anterior. Entretanto, Saiyonji, bem como os outros membros do conselho estudantil passam a desafiar Utena pela posse de Anthy, pois é dito que aquele que a possuir terá o Poder para Revolucionar o Mundo (Sekai wo Kakumei suru Chikara wo), conhecido também como o Poder de Dios, entidade misteriosa que é referenciada quando Anthy invoca a espada de dentro de seu corpo.
"Poder de Dios que reside em mim, ouça seu mestre e se manifeste!" - Ritual de invocação da espada feito por Anthy |
Utena possui um foco muito grande no desenvolvimento de seus personagens, característica que exibe o poder dos criadores de criar personagens coerentes com pessoas reais, que sofrem mudanças no decorrer da série. Entretanto, produções com tal característica, como Evangelion e Paranoia Agent tem um pequeno "defeito": quando o expectador não se identifica com as personagens, as cenas podem ficar tediosas.
Diferentemente de Evangelion, que pode ser diferenciado de um anime do gênero mecha comum já nos episódios iniciais, Utena faz o contrário, mostrando-se como um shoujo, lembrando muito Sailor Moon e outras obras do gênero mahou shoujo durante praticamente toda a sua primeira saga (eps 0-13), possuindo episódios simples e bem humorados. Entretanto, o tom da obra vai ficando cada vez mais sombrio, até a quarta e última saga (chamada carinhosamente de Saga do Fim do Mundo... sugestivo não?).
Diferentemente de Evangelion, que pode ser diferenciado de um anime do gênero mecha comum já nos episódios iniciais, Utena faz o contrário, mostrando-se como um shoujo, lembrando muito Sailor Moon e outras obras do gênero mahou shoujo durante praticamente toda a sua primeira saga (eps 0-13), possuindo episódios simples e bem humorados. Entretanto, o tom da obra vai ficando cada vez mais sombrio, até a quarta e última saga (chamada carinhosamente de Saga do Fim do Mundo... sugestivo não?).
Utena foi produzido com um orçamento muito baixo. Como consequência, similarmente a Evangelion, várias cenas foram repetidas para tornar possível realizar a produção com o dinheiro que foi disponibilizado. A ação do anime deixa muito a desejar, uma vez que podemos ver sempre as mesmas animações de ataque, Utena rolando no chão após levar um golpe, e até mesmo as animações onde ela pratica esportes. Embora tais repetições de animação possuam como causa facilmente identificável tal falta de fundos, há outro tipo de repetição, mais importante.
Repetindo certos elementos em cada saga e episódio, o que o anime faz é gerar uma estrutura, ressaltando a importância de certos elementos específicos. Como principal exemplo disso, podemos verificar que, por volta de 14 min nos episódios com duelos ocorre uma sequência das Garotas Sombra (Kashira Kashira?), sucedida por uma de Zettai Ummei Mokushiroku, a qual precede o tão aguardado duelo. Em seguida, durante a batalha, ocorrem as cenas de ação, com direito a trilha sonora enigmática e cujo forte uso de paradoxo e oposição de ideias se acelera até o clímax da batalha, onde Utena recebe o Poder de Dios em seu corpo e derrota o oponente com um golpe rápido. Tal procedimento foi feito justamente para tentar deixar o expectador acostumado à estrutura de um mahou shoujo, com os famosos "Villain of the week"(vilão da semana, análogo ao "monstro da vez" dos mechas), para no final surpreender a todos com sua revolução.
Além de tais repetições óbvias, o anime possui também outros padrões, porém mais sutis. Estes tem a ver com pequenos detalhes, como o esquema de cores. Como exemplo, temos que, em cada saga, ocorrem 7 duelos, um para cada cor, de maneira periódica na série. Além disso, elementos como as rosas e borboletas se encontram presentes durante todo o anime, com as primeiras indicando traços de personagens, e as últimas, memórias.
Além de tais repetições óbvias, o anime possui também outros padrões, porém mais sutis. Estes tem a ver com pequenos detalhes, como o esquema de cores. Como exemplo, temos que, em cada saga, ocorrem 7 duelos, um para cada cor, de maneira periódica na série. Além disso, elementos como as rosas e borboletas se encontram presentes durante todo o anime, com as primeiras indicando traços de personagens, e as últimas, memórias.
Pode-se alegar que tais repetições foram feitas também apenas para poupar dinheiro, entretanto, estas possuem um significado mais profundo. Ao fazê-las, o anime acostuma o expectador à estrutura proposta, fazendo-o dar uma importância às sequências de cenas presentes em todos os episódios, fazendo com que ele espere por elas. Até o final da série, tal "tradição" é quebrada, colocando em xeque as noções de realidade tanto das personagens quanto dos expectadores.
Acho lindo como essa cena não faz sentido nenhum fora do contexto '-' |
Agora será feita uma análise do final do anime e o significado da obra como um todo, e portanto haverão SPOILERS pesados daqui para frente, leia por sua conta e risco.
ALERTA DE SPOILER! |
Vamos continuar nossa caminhada:
Apenas entender o que houve por si só é um processo complicado. Em suma, temos o seguinte: no final do anime é revelado que Dios havia sido de fato um príncipe (o mesmo que consolou Utena) em tempos antigos, possuindo poderes divinos e atuando como uma espécie de protetor para a humanidade. Entretanto, sua tarefa havia deixado ele fatigado e ferido. Sua irmã, Anthy, o desejava de forma romântica, e não suportando vê-lo dessa forma, o selou do resto mundo, tornando-se uma bruxa e sendo penetrada por um bilhão de espadas que representam o ódio dos humanos todos os dias.
Aparentemente, apenas o espírito de Dios foi selado, e ele perdeu todos os seus poderes e nobreza, tornando-se Akio, o qual é comparado a Lúcifer no anime. Todos os duelos foram forjados por ele utilizando o nome de Fim do Mundo, e seu objetivo era encontrar alguém nobre o bastante para libertar Dios, com o intuito de receber seus poderes de volta.
Não está claro se as "intervenções" de Dios no meio dos duelos foram de fato interferências de seu espírito ou por parte de Akio com seus hologramas (se bem que eles são a mesma pessoa). Entretanto, pode-se observar seu espírito consolando Utena no último episódio, antes de libertar seu poder completamente.
Em algumas análises linkadas no final deste texto[5], são discutidas quais são exatamente as posições de Dios e Anthy no universo do anime, e é proposto que estes seriam o análogo a Adão e Eva, sendo o primeiro casal existente e também o primeiro a cometer um pecado, sendo consequentemente punidos pela ordem cósmica. Eu particularmente acho mais interessante analisar as mensagens que os autores desejavam passar ao expectador ao invés da cosmologia interna, mas pode-se também discutir tais temas nos comentários desta postagem.
Utena é uma história de coming-of-age, gênero no qual o protagonista passa por uma fase de amadurecimento, normalmente da adolescência para a vida adulta. Pode-se constatar isso analisando o elenco e suas motivações, e também a influência do livro Demian[3] no anime.
Damian, obra que inspirou Utena |
Com tal sinopse, é fácil ver que a estória de Demian possui fortes temas de coming of age, os quais foram herdados por Utena, tais como o desejo de Emil de preservar lembranças de um "lugar iluminado" (Miki), relacionamentos afetivos impossíveis (Juri), desejo de poder (Saiyonji/Touga) e a necessidade de uma moralidade absoluta separando o bem do mal (Utena). Mas de longe a maior referência explícita a tal obra é a cerimônia realizada durante os encontros do Conselho Estudantil:
"Se o pássaro não for capaz de quebrar a casca do ovo, ele morrerá sem ter nascido.
Nós somos o pássaro, o mundo é nosso ovo.
Para nascermos, devemos destruir a casca do mundo.
Destruir a casca do ovo,
Para revolucionar o mundo!"
Para revolucionar o mundo!"
Cuja semelhança com o original de Demian é inegável:
"A ave sai do ovo.
O ovo é o mundo.
Quem quiser nascer deve destruir um mundo.
A ave voa para Deus.
E o deus se chama Abraxas*."³
*Abraxas, é um deus do gnosticismo, tema melhor tratado neste texto.
Mantra do conselho estudantil |
Um tema fortemente relacionado a coming-of-age é o de revolução, que é de longe o mais presente neste anime[6]. O significado mais comum de tal palavra extrai a maior parte do conceito em Utena, que é o de mudança, de renovação. Durante a maior parte da obra, o foco são os duelos, que ocorrem porque os duelistas desejam o Poder de Dios para revolucionarem o mundo. Entretanto, é revelado que tudo não passou de uma ilusão criada por Akio, tudo que ocorreu foi falso. Na verdade, suas motivações expressam justamente o caráter de dúvida das personagens, como o próprio Akio menciona: "eles não sabem o que desejam, e por isso querem alguém que lhes diga o que desejam".
É irônico o fato de os duelistas clamarem tanto por revolução enquanto duelam, pois ao fazer isso, apenas estão sendo manipulados por Akio, que seria aquele que detém o poder sobre o mundo, e que deseja manter as coisas como estão: sob seu controle. Além de ter enganado os duelistas, Akio também enganou a audiência, fazendo-a acreditar nos duelos. Tal aspecto se encontra presente no anime justamente para exibir a manipulação que a sociedade exerce sobre os indivíduos, deixando-os acomodados e impondo coisas a estes (expectadores), ao mesmo tempo em que faz outros pensarem que estão agindo por conta própria, quanto na verdade estão sendo alienados (duelistas).
Com o conceito de revolução em mente, fica mais fácil entender o papel de Akio na trama. Ele havia sido Dios, mas perdeu a nobreza, e seu objetivo na estória é obter isso e seus poderes de volta. A imagem do príncipe representa um ideal, algo inalcançável, presente no mundo da imaginação das crianças, é aquela figura que traz um ar de segurança e proteção, sendo exatamente o que ele fazia antes de sua metamorfose. Neste contexto de coming-of-age Akio representa os ideais da juventude, que estão sendo superados aos poucos. Sua vontade de se tornar Dios novamente é o desejo do indivíduo de voltar para os ideais simples da infância, enquanto a forma de Akio propriamente dita é também um ideal, um ideal de homem para a sociedade.
Akio expressa o poder dos adultos, sendo um modelo para o homem: bonito, poderoso, etc. É um ideal mais maduro, mas que também é prejudicial. O fim da adolescência é acompanhado da quebra dos ideais, tanto os mais infantis quanto os mais maduros, e também os impostos pela sociedade. Vemos no anime que Akio personifica o patriarcado, tentando oprimir Anthy e Utena, ao mesmo tempo em que há o desejo de se tornar Dios novamente. A série culmina com sua derrota, e pode-se perceber que ele se encontra praticamente impotente depois do desaparecimento de Utena: o ideal foi superado. No filme, a liberação é bem mais explícita, pois a revolução culmina justamente no ato de Matar o Príncipe, que pode ser traduzido como uma superação de ideais. Para que Utena possa crescer, ela não deve se tornar um príncipe, personificando a sociedade que a rodeia, mas deve superar tal imagem, livrando-se dos ideais antigos.
É irônico o fato de os duelistas clamarem tanto por revolução enquanto duelam, pois ao fazer isso, apenas estão sendo manipulados por Akio, que seria aquele que detém o poder sobre o mundo, e que deseja manter as coisas como estão: sob seu controle. Além de ter enganado os duelistas, Akio também enganou a audiência, fazendo-a acreditar nos duelos. Tal aspecto se encontra presente no anime justamente para exibir a manipulação que a sociedade exerce sobre os indivíduos, deixando-os acomodados e impondo coisas a estes (expectadores), ao mesmo tempo em que faz outros pensarem que estão agindo por conta própria, quanto na verdade estão sendo alienados (duelistas).
Com o conceito de revolução em mente, fica mais fácil entender o papel de Akio na trama. Ele havia sido Dios, mas perdeu a nobreza, e seu objetivo na estória é obter isso e seus poderes de volta. A imagem do príncipe representa um ideal, algo inalcançável, presente no mundo da imaginação das crianças, é aquela figura que traz um ar de segurança e proteção, sendo exatamente o que ele fazia antes de sua metamorfose. Neste contexto de coming-of-age Akio representa os ideais da juventude, que estão sendo superados aos poucos. Sua vontade de se tornar Dios novamente é o desejo do indivíduo de voltar para os ideais simples da infância, enquanto a forma de Akio propriamente dita é também um ideal, um ideal de homem para a sociedade.
Akio expressa o poder dos adultos, sendo um modelo para o homem: bonito, poderoso, etc. É um ideal mais maduro, mas que também é prejudicial. O fim da adolescência é acompanhado da quebra dos ideais, tanto os mais infantis quanto os mais maduros, e também os impostos pela sociedade. Vemos no anime que Akio personifica o patriarcado, tentando oprimir Anthy e Utena, ao mesmo tempo em que há o desejo de se tornar Dios novamente. A série culmina com sua derrota, e pode-se perceber que ele se encontra praticamente impotente depois do desaparecimento de Utena: o ideal foi superado. No filme, a liberação é bem mais explícita, pois a revolução culmina justamente no ato de Matar o Príncipe, que pode ser traduzido como uma superação de ideais. Para que Utena possa crescer, ela não deve se tornar um príncipe, personificando a sociedade que a rodeia, mas deve superar tal imagem, livrando-se dos ideais antigos.
Seguindo o tema de revolução e libertação dos costumes da sociedade, o anime também deve ser elogiado por mostrar temas que quebram paradigmas sociais, coisa extremamente importante, devido ao caráter relativamente conservador da sociedade japonesa. Como exemplo principal, temos o amor de Juri com Shiori, que é claramente lésbico, embora nada seja ocorra explicitamente, havendo também dicas de encontros homossexuais entre Touga e Saiyonji.
Susan Napier, estudiosa de literatura e cultura japonesa (que já teve um texto traduzido publicado no blog, onde falava sobre o Problema da Existência na Animação Japonesa) comenta em seu livro, Anime from Akira to Howl's Moving Castle: Experiencing Contemporary Japanese Animation[2] , sobre a interpretação de Utena como uma história de coming of age. Ela afirma que o anime faz uso de temas comuns em contos de fadas e animes shoujo, como castelos, príncipes charmosos, romances e etc para criticar a sensação de conforto oferecida por estes, alegando que Utena, durante seu processo de amadurecimento, deve superá-los para poder encarar o mundo real e cruel dos adultos.
Napier também associa o relacionamento de Utena e Anthy como uma metáfora para a necessidade de se integrar duas partes distintas da personalidade de uma mesma pessoa, alegando que a libertação (ou a revolução se preferir) de ambas só ocorreu quando estas conseguiram se unir de alguma forma, seja com a inspiração que Utena deu a Anthy no anime, ou à transformação de Utena em um carro para libertar Anthy no filme.
Porém, a mensagem de revolução em Utena é ainda mais profunda. O anime também traz ideias idealistas, as quais apoiam a tese de que a realidade é fluida e dependente do observador (assim como em Lain). Isso se torna aparente na série durante a segunda saga, a Black Rose Saga, na qual indivíduos associados aos duelistas antigos tentam derrotar Utena para matarem Anthy.
No final de tal arco, é revelado que a mente por trás de tudo era Mikage, o qual enxergava o mundo de modo bem diferente dos outros, distorcendo muitos acontecimentos devido à culpa que sentia. Mas a loucura não para por ai: foi ele quem incentivou os duelistas a tentarem derrotar Utena, porém, no final da saga é revelado que ele já estava morto há anos. Sendo assim, então quem manipulou os duelistas? Quem administrava os seminários de Mikage? Utena não havia lutado com ele?
A mensagem que esta saga traz é claramente idealista: o mundo depende de como você o enxerga. Tais ideias também se encontram intimamente relacionadas com o conceito de revolução. No anime, Anthy estava presa em um caixão, isolada do mundo, e tudo que precisou foi de um incentivo de Utena para escapar, mas acabou fazendo o serviço sozinha. A situação é análoga no filme: Utena consegue perceber que se encontra num mundo de fantasia após se lembrar e aceitar a morte de Touga, seu príncipe, e em seguida incentiva Anthy a enxergar a farsa. A fantasia era real para elas, até conhecerem um plano mais elevado, e em seguida causarem a mudança, a evolução, a revolução.
O irônico é que apesar de Utena criticar a busca por ideais, que seriam coisas perfeitas e eternas, o anime se tornou exatamente isso: algo eterno, pois mesmo 20 anos depois de seu lançamento, continua sendo discutido, e a cada vez que é reassistido por um de seus fãs novas coisas são percebidas, detalhes que podem mudar totalmente a interpretação da obra. As ideias oferecidas são praticamente atemporais, e é lamentável o fato de o anime ter tão pouco reconhecimento. Dito isto, vamos encerrar nossa conversa, para quem sabe causar uma revolução.
No final de tal arco, é revelado que a mente por trás de tudo era Mikage, o qual enxergava o mundo de modo bem diferente dos outros, distorcendo muitos acontecimentos devido à culpa que sentia. Mas a loucura não para por ai: foi ele quem incentivou os duelistas a tentarem derrotar Utena, porém, no final da saga é revelado que ele já estava morto há anos. Sendo assim, então quem manipulou os duelistas? Quem administrava os seminários de Mikage? Utena não havia lutado com ele?
A mensagem que esta saga traz é claramente idealista: o mundo depende de como você o enxerga. Tais ideias também se encontram intimamente relacionadas com o conceito de revolução. No anime, Anthy estava presa em um caixão, isolada do mundo, e tudo que precisou foi de um incentivo de Utena para escapar, mas acabou fazendo o serviço sozinha. A situação é análoga no filme: Utena consegue perceber que se encontra num mundo de fantasia após se lembrar e aceitar a morte de Touga, seu príncipe, e em seguida incentiva Anthy a enxergar a farsa. A fantasia era real para elas, até conhecerem um plano mais elevado, e em seguida causarem a mudança, a evolução, a revolução.
O irônico é que apesar de Utena criticar a busca por ideais, que seriam coisas perfeitas e eternas, o anime se tornou exatamente isso: algo eterno, pois mesmo 20 anos depois de seu lançamento, continua sendo discutido, e a cada vez que é reassistido por um de seus fãs novas coisas são percebidas, detalhes que podem mudar totalmente a interpretação da obra. As ideias oferecidas são praticamente atemporais, e é lamentável o fato de o anime ter tão pouco reconhecimento. Dito isto, vamos encerrar nossa conversa, para quem sabe causar uma revolução.
Referências
[1] IKUHARA, Kunihiko. Revolutionary Girl Utena. Be-Papas 1997.
[2] NAPIER, Susan. Anime from Akira to Howl's Moving Castle: Experiencing Contemporary Japanese Animation. Nova York, Estados Unidos: Palgrave Macmillian, 2005.
[3] HESSE, Herman. Demian, 22º edição, tradução de Ivo Barroso. ³Capítulo 5: A ave sai do ovo.
[4] http://www.denofgeek.com/us/tv/steven-universe/266591/steven-universe-was-influenced-by-revolutionary-girl-utena- acessado em 14/07/2018 às 22:46 - Texto discutindo as influências de Utena em Steven Universe
[5] ohtori.nu - acessado em 14/07/2018 às 22:45 - Site da comunidade de Utena, cheio de reviews, comentários, fórum de discussões e fan arts relacionados à franquia
[6] https://www.youtube.com/watch?v=GwmnSBt6i4Q - acessado em 14/07/2018 às 22:46 - Vídeo(em inglês) que comenta sobre o significado de revolução em Utena
[4] http://www.denofgeek.com/us/tv/steven-universe/266591/steven-universe-was-influenced-by-revolutionary-girl-utena- acessado em 14/07/2018 às 22:46 - Texto discutindo as influências de Utena em Steven Universe
[5] ohtori.nu - acessado em 14/07/2018 às 22:45 - Site da comunidade de Utena, cheio de reviews, comentários, fórum de discussões e fan arts relacionados à franquia
[6] https://www.youtube.com/watch?v=GwmnSBt6i4Q - acessado em 14/07/2018 às 22:46 - Vídeo(em inglês) que comenta sobre o significado de revolução em Utena