Ao no Flag e as diferentes facetas do amadurecimento.
Histórias sobre amadurecimento (do gênero coming-of-age) são uma das coisas que eu mais vejo por aí. Normalmente centradas naquele âmbito escolar muito familiar para quem vê animes com frequência, já vi histórias desse tipo que vão de um slice of life fofo como Kimi ni Todoke, até as loucuras metafóricas de FLCL.
Ambos do mesmo gênero, mas não poderiam ser mais diferentes um do outro.
Uma coisa que histórias de coming-of-age têm aos montes é romance. Faz sentido, afinal no período em que estamos amadurecendo muitas pessoas (tirando os otaquinhos) têm suas primeiras experiências no amor.
Ao no Flag, escrito e desenhado por KAITO, publicado no Shounen Jump+ é uma adição peculiar a esse gênero tão vasto. Sendo à primeira vista um romance escolar clichê, esse mangá surpreende ao questionar a sociedade em que os personagens e, consequentemente, o leitor vivem, subvertendo toda e qualquer expectativa criada de que aquele seria apenas mais um romance adolescente.
As turbulências da juventude
Ao no Flag começa na primavera do terceiro ano do ensino médio de Ichinose Taichi. Nesse momento tão importante de sua vida ele acaba na mesma classe de Kuze Futaba, uma garota quieta e com poucos amigos além de sua melhor amiga Itachi Masumi, e de seu amigo de infância Mita Touma, um cara popular cheio de amizades. Kuze acaba contando a Taichi que está apaixonada por Touma e pede a ajuda dele para se aproximar do rapaz. Taichi, por sua vez, aceita e tenta fazer e pôr em prática planos para auxiliar Kuze em seus objetivos. No entanto, em um determinado ponto, Taichi percebe que acabou se apaixonando por ela.
O que parecia ser apenas mais uma história de triângulo amoroso clichê acaba então sofrendo uma reviravolta. Em um dado momento, Masumi, a melhor amiga de Kuze, confronta Touma para tentar confirmar suas suspeitas: de que Touma é apaixonado por Taichi. Nessa mesma situação, ela também admite seu similar segredo, o de que ela também é apaixonada por sua amiga.
O elemento queer sendo levado a sério em uma história fora de um BL ou GL foi o que primeiramente mais me chamou atenção na história. Kaito inclusive parece tentar ao máximo se distanciar desses dois gêneros, já que o romance que tem mais foco e desenvolvimento não é queer. Vale acrescentar que, em um capítulo mais recente, existe até mesmo um momento que parece ter sido feito exatamente para mostrar o quão desagradáveis e sem noção fujoshis podem ser.
Esse foi o fator que me chamou atenção primeiro, mas a história vai bem além disso e traz várias discussões maravilhosas que poucos mangás do gênero e da própria demografia shounen acabam tocando. Além de mostrar o quão tóxica é a rivalidade feminina, discussões sobre questões de gênero são levantadas, dois pontos abordados que me pegaram completamente de surpresa.
Porém, a história ainda é sobre amadurecimento então os temas normalmente tocados nesses tipos de narrativas também estão presentes. A diferença é que em Ao no Flag, nós vemos vários lados dos mesmos problemas. O que vou fazer depois que formar? Como vou viver minha vida? E afinal, quem eu sou? As perguntas são as mesmas, mas por conta de os personagens estarem em situações muito diferentes elas não têm o mesmo significado.
O título em inglês de Ao no Flag, Blue Flag, é o nome de uma flor, também conhecida como Iris versicolor, que pode simbolizar sabedoria, coragem e fé.
A "Oração da Serenidade" citada no mangá.
Para mim, por meio de todos os problemas que os personagens enfrentam, Kaito quer transmitir ao leitor exatamente isso: usar de sua sabedoria de forma certa, ter coragem para enfrentar o que vir e ter fé, não no sobrenatural, mas em si mesmo. Nessa fase nos deparamos com vários problemas, muitos sendo enfrentados pela primeira vez na vida, mas se desistirmos já no começo, qual vai ser o ponto?
Uma história interessante e que tem algo a dizer, porém consegue se manter, na maior parte do tempo, leve como todo bom slice of life. Acredito que o mangá ainda esteja longe de terminar, então Kaito tem ainda inúmeras possibilidades para nos surpreender até o final.
Como toda boa história temos bons personagens
Acredito que mais do que o plot, o cristal lapidado desse mangá são seus personagens. A princípio podem parecer estereotipados, mas Kaito vai acrescentando elementos aos poucos que os tornam cada vez mais tridimensionais e únicos. Eles têm pontos fortes e fracos, defeitos e qualidades e são cheios de contradições, como qualquer humano.
Nosso protagonista é Ichinose Taichi. Um jovem com uma vibe meio pessimista e com uma personalidade mais puxada para o lado introvertido. Taichi se compara bastante com seu amigo de infância que parece ser o seu total oposto: enquanto ele é baixinho e atrapalhado, seu amigo é alto e atlético; enquanto ele tem um círculo pequeno e fechado de amigos, seu amigo faz amizade fácil com qualquer um. Isso claramente alimenta seus problemas de autoestima, os quais ele acaba transmitindo para os outros.
Ele não é alguém ruim, isso fica bem claro. Embora ele mesmo chegue à conclusão de que foi por motivos egoístas, Taichi decide, por exemplo, ajudar a sua nova amiga Kuze de todas as formas que ele consegue pensar, até mesmo quando percebe que está apaixonado por ela. No entanto, acho que algo que o faz interessante é a sua vontade de não se arrepender. A frase clichê “vou tentar para não me arrepender de nunca ter tentado”, ou algo assim, se encaixa com o Taichi em alguns momentos, porém em vários casos o que parece é que ele prefere não tentar para não se arrepender de um provável fracasso. E é o processo de deixar isso de lado, o pessimismo e o incomodo com si mesmo, que observamos durante a narrativa.
Kuze Futaba, nossa outra protagonista, é muito parecida com Taichi: baixinha, atrapalhada, quieta e com poucos amigos. Ela também apresenta os mesmos sintomas de ter problemas de autoestima, chegando até a serem ainda mais intensos, na minha opinião. Porém, mesmo tão parecida, para mim, ela é como se fosse uma "versão melhorada do Taichi", se é que isso faz sentido. Melhorada porque ao invés de se contentar com o que ela enxerga que são seus defeitos, ela decide mudar; Kuze decide que quer ser alguém diferente já que não está feliz com ela mesma. Esse processo foi engatilhado por outra pessoa, tendo um impacto muito positivo nela e no Taichi depois, já que ela começa a incentivá-lo a fazer o mesmo.
Algo muito bom no mangá é que na realidade nós acompanhamos esse processo de Kuze tentar melhorar.
Vemos ela falhar e ter uma recaída, voltando a ter pensamentos autodepreciativos, o que torna essa luta dela muito mais tangível. Afinal, quem é que depois de se odiar por tanto tempo começa a instantaneamente se amar ininterruptamente? É um processo difícil e lento.
A melhor amiga de Kuze é a nossa outra protagonista, Itachi Masumi. Ela contrasta bastante com sua pequena amiga: é alta, tem cabelos escuros e compridos e é dona de um olhar afiado. Ela emite uma aura mais intimidadora e é muito protetora com sua melhor amiga.
Eu gosto da Masumi, porém acredito que de todos os protagonistas ela foi a mais deixada de lado na história e pelo próprio Kaito. A história é quase um triângulo amoroso ao invés de um polígono pelo fato dela realmente não receber a atenção que deveria. Para tentar livrar Kaito um pouco desse erro, posso dizer aqui que as não tantas aparições dela até fazem sentido, já que ela é aparentemente a única do grupo que tem total consciência de que está no último ano do ensino médio e precisa estudar.
Sem tempo, irmão.
Sim, sensata u-u E mesmo não tendo sido tão bem construída quanto o Touma (que falarei a seguir) ou os outros dois, não é como se não tivéssemos nada sobre ela na narrativa. Masumi claramente ainda está em um momento de questionamento, tentando entender sua própria sexualidade e como lidar com isso. Ela inclusive tenta sair com caras numa tentativa de se sentir atraída pelo sexo oposto, o que é inclusive uma situação muito comum com quem está passando por isso no mundo real. Masumi também traz o debate de se sentir mal ao esconder a verdade de quem ela se importa, demonstrando que por baixo da fachada de boa estudante e filha exemplar ela na realidade está em desespero.
Quero muito mais foco nela, saber mais sobre ela, sua situação familiar e tudo mais o que for possível. Por favor, Kaito-sensei! (-人-)
Mita Touma, nosso quarto e último protagonista, é o amigo de infância de Taichi. À primeira vista, Touma parece ser um garoto animado e otimista; ele é o capitão do time de beisebol, é cheio de amigos, aparentemente não tem problemas nos estudos e tem uma família não muito convencional, porém amorosa e presente.
Ele e a Masumi compartilham da mesma dor de se esconderem e de esconderem o que sentem, uma dor que ultrapassa as páginas do mangá e pode ser sentida pelo leitor. A forma como o Touma lida e quer resolver esse “problema” é, na minha opinião, ainda mais dolorosa do que observar a forma que a com que a Masumi está lidando com a sua dificuldade. Enquanto ela parece ainda estar no processo de se questionar sobre o que deve fazer, o porquê deve fazer isso, etc, o Touma já chegou a uma conclusão e aparentemente se contentou com ela. E, com isso, ele decide que vai fugir de tudo. É muito triste pensar que sua desesperança é tanta que ele simplesmente não enxerga outra forma de lidar com essa situação além de fugir.
Ao invés de sonhar em seguir uma carreira que goste ou ter um sonho fútil como qualquer outro garoto de sua idade (sei lá, ter um carro legal?) ele explica que deseja ter liberdade.
Mas fica evidente que não é a liberdade para poder chegar a hora que quiser em casa, comer o que quiser, quando quiser, etc.; Touma quer liberdade para ser quem ele é sem medo, sem medo de machucar aqueles que ele ama. Concluir que sua própria sexualidade vai ferir outros é extremamente deprimente (para mim pelo menos), mas com certeza é algo que muitos podem se identificar. Além disso, a situação familiar em que Touma vive fez com que ele também chegasse à conclusão de que a presença dele é um incomodo em sua própria casa, mesmo que obviamente seja tudo fruto de sua cabeça. Esse fator o incentiva ainda mais a querer fugir e ser “livre”.
Fica bem claro como Touma sofre por ter esses pensamentos e o quão solitário ele na realidade é. Mesmo com um círculo social vasto, mesmo com uma família atenciosa, ele sente que mostrar quem ele é vai causar problemas. Por conta disso, Touma se esconde e acaba se isolando, já que tudo deve ser feito por baixo dos panos, sem ninguém ver ou saber. Por ser tão fechado ele até mesmo acaba entrando em conflito com sua família, o que parece tornar as chances de ele algum dia conseguir se abrir ainda menores. Acredito que a Masumi também seja uma personagem solitária, mas como a história foca mais no Touma isso é ainda mais evidente nele.
Pessoalmente, Touma é o meu personagem favorito da história disparado. A construção dele ao longo do mangá foi quase como se fosse um slow burn; fomos ganhando pedaços dele aos pouquinhos, até que tudo se encaixou e pudemos entender exatamente o porquê de suas ações, expressões e falas.
Algo que achei intrigante e vale citar foi a relação do Touma com a Masumi. Apesar dos dois saberem que estão em situações parecidas e provavelmente passando por problemas similares, eles não viram exatamente aliados um do outro, como eu penso que faria sentido. O que parece é que eles viram cúmplices de um crime e tentam manter uma certa distância, mas ainda tentam apoiar um ao outro de alguma forma. Uma relação esquisita, mas até que fofa, para falar a verdade.
A W K W A R D
Existem outros personagens sem serem os protagonistas que também são muito interessantes, mas vou me estender apenas para falar sobre a Yagihara Mami. De primeira, ela é o retrato falado de uma vilã de um shoujo escolar. Bonita, cheia de amigos e facilmente atrai admiradores. No entanto, ela é apaixonada pelo nosso protagonista bonitão, o Touma, o único cara que não dá bola para ela. Gosto de como Kaito faz ela parecer extremamente estereotipada para depois mostrar quem ela realmente é: um ser humano normal, não uma vilã artificial.
Ela questiona o sentido dos estereótipos e mostra sua revolta contra eles. Como ela se encaixa em um determinado perfil, todos lidam com ela já considerando que ela vai agir daquela maneira, quando na verdade os objetivos dela nunca foram aqueles. Mami ainda traz outras discussões muitos boas para a história, porém continua sendo uma personagem complexa, cheia de imperfeições das quais ela é ciente.
Uma verdadeira obra de arte
Essa é aquela parte em que eu finjo que entendo de arte só para dizer que adoro como Kaito desenha. Eu pessoalmente gosto desse traço mais limpo e cheio de formas mais arredondadas usadas pelo mangá. É difícil ver linhas muito grossas pela história; é tudo bem suave e passa essa sensação de leveza que um bom romance escolar tem.
No geral, Kaito "guarda" expressões mais realistas para serem usadas em momentos mais sérios, o que dá mais ênfase na mudança de atmosfera na história.
Por um outro lado, como boa Gintamafã que sou, amo caras engraçadas e as de Kaito definitivamente não deixam a desejar, mesmo não sendo tão frequentes como eu gostaria.
Essa última imagem me faz rir toda. santa. vez.
Por fim
Recomendo muitíssimo para quem ainda não lê dar uma chance para essa magnífica história de coming-of-age que, mesmo tendo romance como um de seus gêneros, vai muito além de mostrar adolescentes se apaixonando. O amadurecimento pelo qual eles estão passando ultrapassa o romance, mostrando os personagens tendo que lidar com a dificuldades que ser adulto traz, não importa quem eles sejam e onde se encaixam na sociedade, se é que se encaixam em algum lugar. O mangá ainda está em lançamento e convido todos a acompanharem o que Kaito vai desenvolver até o final. Não posso garantir que a história vá se manter até lá no mesmo nível (porque infelizmente não sou vidente haha), mas se continuar da mesma forma que está até agora (o último capítulo que li foi o 44) com certeza vai valer a pena. O mangá está sendo legalmente disponibilizado em inglês, simultaneamente com o Japão, no app e site MangaPLUS. Também é possível achá-lo traduzido em português pelo AMA Scans.