Human Crossing: um anime sobre (o) ser humano
Human Crossing, como seu nome sugere, é um anime sobre o ser humano e os encontros e desencontros que a vida nos propicia, sobre os que passam e os que ficam |
Para começo de conversa, esse é um anime aparentemente bem desconhecido e um pouco difícil de se achar [2]. Ele é bem atípico em relação a maioria dos animes. O gênero do qual mais se aproxima é o slice-of-life, mas a maioria dos animes desse gênero é sobre o dia a dia escolar ou romances, o que não define bem essa obra. Talvez Human Crossing leve ao extremo a definição de um "pedaço-da-vida" (tradução de slice-of-life). O anime é literalmente uma coleção de vidas cotidianas. Isso pode levar a maioria a considerá-lo um anime chato, mas trata-se de uma série interessante para refletir e discutir costumes. É definitivamente uma "série para adultos" [3], mas não por envolver nudez, violência nem nada do tipo. Apenas, é um anime sobre temas mais "sérios". Bom, eu tinha 18 quando comecei e agora 21, então não quer dizer que adolescentes não possam assistir, mas talvez não agrade a esse público.
Os episódios são independentes um dos outros e daria para fazer uma análise de cada um deles separadamente [4]. A vantagem de ser episódico é que é possível assistir em qualquer ordem, então vou destacar de qual episódio estou falando sempre e, quem sabe, você pode dar uma chance a esse anime começando por aquele que mais lhe atrair.
Amor: uma relação entre pessoas, não coisas
A própria abertura do anime (aliás, muito boa, ouçam) já deixa explícito algo: o
sentido da vida, para o anime, é amar. E o amor envolve desde perdoar uma mãe que o agredia ou um pai ausente (episódios 1 e 4); o amor na adolescência (ep. 2); a dar mais atenção ao seu filho (ep. 3); a acreditar na bondade do mundo e dos outros (ep. 6); a dar uma segunda chance para uma presidiária ou uma "jovem delinquente" (ep. 8 e 12); a perceber que os laços de amor, mesmo entre uma família, se constroem no dia a dia (ep. 9); a entender que o amor supera o tempo e a distância (ep. 10); a querer proteger e respeitar os outros mesmo que não os conheçamos (ep. 11).
"Nunca se esqueça que é para isso que nascemos", continua a abertura. Temos indicado aqui um dos temas centrais do anime |
O ato de amar é interpretado no sentido mais amplo da palavra já que não se trata apenas de romance nem de afeto necessariamente. Se trata de colocar as relações inter-humanas a frente de outros aspectos da vida, como o trabalho, o dinheiro ou a burocracia. Vou contar um pouco dos três primeiros episódios para exemplificar isso.
No primeiro, temos um boxeador frustrado, que vai para o esporte para justificar a cicatriz (literal) que sua mãe deixou. Ele vive num mundo superficial e de aparências de uma "estrela" do esporte. Em um momento, ele concede uma entrevista apenas para se mostrar para os fãs e, em outro, diz ao seu empresário: "Estou sendo o tipo de pessoa que você quer que eu seja". Aqui seria possível discutir a ideia do filósofo francês Guy Debord de uma "sociedade do espetáculo", em que as relações humanas perdem seu caráter inter-humano e se tornam mediadas por aparências e imagens [5]. As imagens se tornam mercadorias, no sentido que são produzidas com um intuito de se "vender" uma imagem específica. Assim, as pessoas não se relacionam diretamente umas com as outras, mas através das imagens-mercadorias que têm das outras. De forma mais ampla, isso funciona com todas as mercadorias. E a mágoa que o filho carrega está muito relacionada a uma mercadoria: uma caixa de brinquedos. A mãe reclama que o filho vai mal na escola, mesmo ela o mimando com vários brinquedos. Ela acaba acertando o rosto dele contra a caixa e o fere. A mãe passa a vida achando que o problema eram os brinquedos (as mercadorias), mas o que causa suas notas ruins e a mágoa era ela ter achado que ele se importava com os brinquedos, quando, na verdade, o que o deixava triste era a mãe não ter ido buscá-lo na escola num dia chuvoso (ou seja, a falta de atenção dela, a não-relação humana).
No segundo episódio, temos um jovem casal de adolescentes que têm um filho e, quando o pai morre durante seu serviço como motoboy, começa-se uma disputa judicial com os avós sobre a guarda da criança. Temos também um jovem advogado que não consegue muitos trabalhos por seu forte senso de justiça. Ele aceita o caso da moça, mas descobre que ela formalmente não tem direitos por nunca ter oficializado o casamento. Além de superar-se uma visão de juventude associada à imaturidade, discutem-se princípios filosóficos sobre o que é justiça: deveria a burocracia, um pedaço de papel, que é a certidão de casamento, valer mais que uma relação humana duradoura de dois anos? No fim, um acordo amigável entre as partes é o mais sensato e mais humano a se fazer. Novamente, tal como no primeiro episódio, embora clichê, o apelo maior é sempre ao amor como fator mais humano possível.
No terceiro episódio, temos um clichê dos pais e de alguns adolescentes nostálgicos na atualidade: "meu filho só vive na Internet" ou "antigamente as crianças brincavam na rua, hoje só ficam no computador". No caso do anime, um pai, muito ocupado com o trabalho, compra uma bicicleta para o filho, mas se decepciona por este preferir ficar vendo TV. A primeira vista, parece uma crítica às novas tecnologias e como elas influenciam o comportamento humano e talvez seja apenas isso, mas acredito que é possível ir além. Logo fica claro que o problema do menino não é a tecnologia pois, quando o pai tira um dia para trabalhar menos, o garoto consegue perfeitamente se desvencilhar da frente da TV e ir brincar ao ar livre. Por outro lado, quando ele volta a trabalhar muito, passa a viver alheio a relação com seu filho, nem percebendo que o filho troca de bicicleta, por exemplo. O paralelo com o primeiro episódio me parece inevitável: ele lembra que na sua infância aparentemente o que lhe trouxe felicidade foi a bicicleta, quando, na verdade, foi a presença do pai [6].
No sétimo episódio, um jornalista se sente rebaixado quando é transferido da sede do jornal para uma correspondente de uma cidade pequena. O trabalho fica tão na frente de tudo que ele ignora que sua mulher grávida prefere um lugar mais calmo como aquele. Mais a frente, por conta de uma decepção no trabalho, vai se embebedar e quase perde o parto do seu filho, só para descobrir que o chefe e seus colegas de jornal foram as pessoas que acompanharam sua mulher ao hospital em sua ausência. Só aí, começa a perceber que a vida ali é boa e que o trabalho não precisava ser levado ao extremo enquanto um fardo. Paralelamente, essa história discute liberdade de expressão. O jornalista descobre um incêndio onde morreram os pais acamados e a autora foi a filha que sobreviveu. Ele publica a notícia à nível nacional, porque achava os jornalistas locais e a polícia lerdos demais. No entanto, eles já sabiam e a polícia tinha pedido para não publicarem nada com medo dela se matar; e foi o que ela fez. Diante disso, há uma reflexão entre o que é liberdade e o que não é. O chefe dele diz: "O problema não é com o artigo em si, o problema é com seus motivos para escrevê-lo [...] liberdade de imprensa não significa que você pode escrever sobre o que quiser [...] liberdade de imprensa deve respeitar a dignidade humana e o direito à privacidade". Uma ótima reflexão em um momento em que é muito comum as pessoas confundirem, especialmente nas redes sociais, liberdade de expressão com ofender o próximo.
No primeiro, temos um boxeador frustrado, que vai para o esporte para justificar a cicatriz (literal) que sua mãe deixou. Ele vive num mundo superficial e de aparências de uma "estrela" do esporte. Em um momento, ele concede uma entrevista apenas para se mostrar para os fãs e, em outro, diz ao seu empresário: "Estou sendo o tipo de pessoa que você quer que eu seja". Aqui seria possível discutir a ideia do filósofo francês Guy Debord de uma "sociedade do espetáculo", em que as relações humanas perdem seu caráter inter-humano e se tornam mediadas por aparências e imagens [5]. As imagens se tornam mercadorias, no sentido que são produzidas com um intuito de se "vender" uma imagem específica. Assim, as pessoas não se relacionam diretamente umas com as outras, mas através das imagens-mercadorias que têm das outras. De forma mais ampla, isso funciona com todas as mercadorias. E a mágoa que o filho carrega está muito relacionada a uma mercadoria: uma caixa de brinquedos. A mãe reclama que o filho vai mal na escola, mesmo ela o mimando com vários brinquedos. Ela acaba acertando o rosto dele contra a caixa e o fere. A mãe passa a vida achando que o problema eram os brinquedos (as mercadorias), mas o que causa suas notas ruins e a mágoa era ela ter achado que ele se importava com os brinquedos, quando, na verdade, o que o deixava triste era a mãe não ter ido buscá-lo na escola num dia chuvoso (ou seja, a falta de atenção dela, a não-relação humana).
No segundo episódio, temos um jovem casal de adolescentes que têm um filho e, quando o pai morre durante seu serviço como motoboy, começa-se uma disputa judicial com os avós sobre a guarda da criança. Temos também um jovem advogado que não consegue muitos trabalhos por seu forte senso de justiça. Ele aceita o caso da moça, mas descobre que ela formalmente não tem direitos por nunca ter oficializado o casamento. Além de superar-se uma visão de juventude associada à imaturidade, discutem-se princípios filosóficos sobre o que é justiça: deveria a burocracia, um pedaço de papel, que é a certidão de casamento, valer mais que uma relação humana duradoura de dois anos? No fim, um acordo amigável entre as partes é o mais sensato e mais humano a se fazer. Novamente, tal como no primeiro episódio, embora clichê, o apelo maior é sempre ao amor como fator mais humano possível.
No terceiro episódio, temos um clichê dos pais e de alguns adolescentes nostálgicos na atualidade: "meu filho só vive na Internet" ou "antigamente as crianças brincavam na rua, hoje só ficam no computador". No caso do anime, um pai, muito ocupado com o trabalho, compra uma bicicleta para o filho, mas se decepciona por este preferir ficar vendo TV. A primeira vista, parece uma crítica às novas tecnologias e como elas influenciam o comportamento humano e talvez seja apenas isso, mas acredito que é possível ir além. Logo fica claro que o problema do menino não é a tecnologia pois, quando o pai tira um dia para trabalhar menos, o garoto consegue perfeitamente se desvencilhar da frente da TV e ir brincar ao ar livre. Por outro lado, quando ele volta a trabalhar muito, passa a viver alheio a relação com seu filho, nem percebendo que o filho troca de bicicleta, por exemplo. O paralelo com o primeiro episódio me parece inevitável: ele lembra que na sua infância aparentemente o que lhe trouxe felicidade foi a bicicleta, quando, na verdade, foi a presença do pai [6].
O anime discute as relações humanas e a falsa ideia de que extraímos felicidade de objetos |
Bom, nos três casos podemos interpretar pelo lado do clichê mesmo e de um certo apelo tradicionalista a importância da família. É uma leitura possível de ser feita e talvez fosse esse o objetivo original considerando a moralidade japonesa (e, se for, não é como se fosse algo negativo). Enxergo, porém, a questão da alienação e da fetichização da mercadoria (no episódio 1 e no 3 diretamente e, no 2, pelo viés do direito). Ora, para se produzir algo há um trabalho humano que é necessário. Na teoria do valor-trabalho, é isso que é relevante na troca de mercadorias, enquanto a teoria clássica vê nas trocas de mercado apenas trocas entre objetos. A isso, ignorar o dispêndio de trabalho humano e ver a mercadoria como algo intrinsecamente valioso, é que Marx chama de "fetiche". É como diz Lênin [7]: "Onde os economistas burgueses viam relações entre objetos (troca de umas mercadorias por outras), Marx descobriu relações entre pessoas."
E o que isso tem a ver com as histórias? O menino vê o prazer dele, a princípio, na mercadoria (bicicleta), assim como a mãe do episódio 1 (nos brinquedos), e ambos ignoram a relação humana existente ali e não é de se espantar pois é o que acontece a todo momento dentro da sociedade capitalista que esconde suas relações humanas através da aparência da troca. No episódio 2, de forma similar, é o direito que "esconde" as relações humanas através de ficções jurídicas. Então, de certa forma, há o clichê que perdura por todos os episódios: a importância das relações humanas. Mas isso não precisa ser apenas mero discurso conservador e, sim, uma análise de que as relações humanas são destruídas a todo momento pelas relações capitalistas e ocultadas por elas no processo de alienação diária.
E o que isso tem a ver com as histórias? O menino vê o prazer dele, a princípio, na mercadoria (bicicleta), assim como a mãe do episódio 1 (nos brinquedos), e ambos ignoram a relação humana existente ali e não é de se espantar pois é o que acontece a todo momento dentro da sociedade capitalista que esconde suas relações humanas através da aparência da troca. No episódio 2, de forma similar, é o direito que "esconde" as relações humanas através de ficções jurídicas. Então, de certa forma, há o clichê que perdura por todos os episódios: a importância das relações humanas. Mas isso não precisa ser apenas mero discurso conservador e, sim, uma análise de que as relações humanas são destruídas a todo momento pelas relações capitalistas e ocultadas por elas no processo de alienação diária.
Trabalho e lazer: uma falsa oposição?
O público-alvo de Human Crossing talvez seja o que os japoneses chamam de "salaryman", ou seja, o trabalhador assalariado comum. (De fato, um dos autores do mangá original, Kenshi Hirokane, é mais famoso por Kachō Kōsaku Shima, exatamente sobre a vida de um executivo.) Talvez, por isso, é que se insista em discutir a relação com o trabalho. No episódio 3, o pai trabalha demais e isso o impede de ter uma boa relação com seu filho. Mas não é só isso. Quando ele trabalha muito, fica estressado, fuma e vai de metrô para o trabalho; quando começa a diminuir sua carga horária, começa a relaxar, larga o vício e se transporta de bicicleta. Claro que se trata de ficção aqui, mas não é possível observar diferenças nos seus pais, colegas ou em si mesmo quando está trabalhando demais?
Não estou fazendo uma apologia ao ócio, apenas constatando o óbvio: trabalhar é estressante. Não que o trabalho em si seja ruim. Na minha perspectiva, é o que humaniza o ser humano [8], mas, dentro da sociedade capitalista, o trabalho é alienado [9]. A prova desse caráter alienado (separado na etimologia) é que até quando ele vai jogar golfe (o que poderia ser lazer), na verdade, é para entreter os clientes. Assim, o lazer dele vira trabalho, enquanto o trabalho vira desprazer. Não deveria o ser humano se sentir realizado no trabalho, sentir prazer? Outros episódios tocam nessa questão, com o 5, o 7 e o 10. Todos estes permeiam o assunto não só de se dedicar muito ao trabalho e esquecer dos outros, mas também de esquecer de si mesmo e de suas origens.
Não estou fazendo uma apologia ao ócio, apenas constatando o óbvio: trabalhar é estressante. Não que o trabalho em si seja ruim. Na minha perspectiva, é o que humaniza o ser humano [8], mas, dentro da sociedade capitalista, o trabalho é alienado [9]. A prova desse caráter alienado (separado na etimologia) é que até quando ele vai jogar golfe (o que poderia ser lazer), na verdade, é para entreter os clientes. Assim, o lazer dele vira trabalho, enquanto o trabalho vira desprazer. Não deveria o ser humano se sentir realizado no trabalho, sentir prazer? Outros episódios tocam nessa questão, com o 5, o 7 e o 10. Todos estes permeiam o assunto não só de se dedicar muito ao trabalho e esquecer dos outros, mas também de esquecer de si mesmo e de suas origens.
No quinto episódio, um ator se torna arrogante com seus colegas ao ficar famoso. Para ele, os humanos teriam que ser como as cigarras: elas trabalham muito no verão para viver a pouca vida que tem no inverno, ou seja, há que se trabalhar muito, depois curtir. Mas isso o consome aos poucos, ele ganha dinheiro e trabalha demais até que percebe que "nada disso tem a ver com estilo de vida mais adequado para um ser humano". Ele nota o quanto estava sendo cego quando seu filho recém-nascido morre na maternidade e ele nem é capaz de dar um bom nome para ele. Ao perceber que seu filho viveu, mesmo que por um curto período, ele passa a pensar no valor de viver a vida ao máximo. Mas não é um mero carpe diem no sentido que muitos usam de fazer tudo que se quer, eu diria; é aproveitar a convivência mais simples, como as conversas na mesa do bar que ele tinha quando era um ator aspirante, e desfrutar a beleza da vida, do mundo, o que fica nítido quando ele sai para andar de bicicleta na última cena. Ele percebe que a metáfora das cigarras que seu pai usava não tinha nada a ver com priorizar uma coisa sobre a outra, mas sobre balancear trabalho e lazer.
Uma vida apenas de trabalho duro, fama e dinheiro é o que alguém necessita? É o que pondera um dos nossos personagens que percebe o valor do viver a vida |
No sétimo episódio, um jornalista se sente rebaixado quando é transferido da sede do jornal para uma correspondente de uma cidade pequena. O trabalho fica tão na frente de tudo que ele ignora que sua mulher grávida prefere um lugar mais calmo como aquele. Mais a frente, por conta de uma decepção no trabalho, vai se embebedar e quase perde o parto do seu filho, só para descobrir que o chefe e seus colegas de jornal foram as pessoas que acompanharam sua mulher ao hospital em sua ausência. Só aí, começa a perceber que a vida ali é boa e que o trabalho não precisava ser levado ao extremo enquanto um fardo. Paralelamente, essa história discute liberdade de expressão. O jornalista descobre um incêndio onde morreram os pais acamados e a autora foi a filha que sobreviveu. Ele publica a notícia à nível nacional, porque achava os jornalistas locais e a polícia lerdos demais. No entanto, eles já sabiam e a polícia tinha pedido para não publicarem nada com medo dela se matar; e foi o que ela fez. Diante disso, há uma reflexão entre o que é liberdade e o que não é. O chefe dele diz: "O problema não é com o artigo em si, o problema é com seus motivos para escrevê-lo [...] liberdade de imprensa não significa que você pode escrever sobre o que quiser [...] liberdade de imprensa deve respeitar a dignidade humana e o direito à privacidade". Uma ótima reflexão em um momento em que é muito comum as pessoas confundirem, especialmente nas redes sociais, liberdade de expressão com ofender o próximo.
O décimo episódio é um dos mais diferentes, pois sai do cenário japonês e vai para a França em maio de 1968. Bom, para quem não sabe, essa data marca uma série de protestos estudantis e de trabalhadores não só franceses, mas ao redor do mundo. Foi também um importante período para a filosofia anti-capitalista, a arte e a contracultura. Nesse contexto, um jovem artista rebelde se apaixona por uma moça e o casal vive feliz por um tempo até que ele tem que voltar para o Japão. Lá, ele acaba se tornando um pintor "comercial", se "vendendo ao sistema". Ele "perde" suas raízes, o prazer de um trabalho artístico que ele fazia por gosto e passa a fazer um trabalho só pelo dinheiro (novamente, a questão do trabalho e do lazer). A mulher não mais o reconhece enquanto aquele homem que a atraiu. Com algumas reviravoltas, eles se reencontram em Paris e voltam a ficar juntos. O narrador reforça o tema do anime e acrescenta ao amor, a liberdade e a ternura como sentidos da vida. De pano de fundo, na esteira das próprias discussões do maio de 68, vemos menções à globalização, como o restaurante clássico que deu lugar a um fast-food e na maior presença de japoneses em Paris.
Perdoar, não perdoar ou entender: eis a questão
O tema do perdão enquanto uma forma de amor perpassa quase todos os episódios. No quarto, é dito em certo momento que máquinas não esquecem, humanos sim e essa seria nossa grande vantagem: poder "esquecer", ou seja, superar mágoas, perdoar. O sexto decreta: "Acredite no mundo", pois podem haver pessoas más, corruptas, isso não significa que o mundo não seja bom. Os episódios 8 e 12 são similares no seu cenário: um trata sobre uma prisão e outro sobre um reformatório juvenil. O oitavo conclui dizendo que prisioneiros são pessoas como nós, mas que erraram. No 12º, quando ninguém mais acreditava na recuperação de uma jovem, um dos agentes a perdoou e ela recomeçou sua vida.
Um aluno, um professor de filosofia e uma lição: acredite no mundo. Abstrato a princípio, mas muito fácil de entender |
Apesar do tema universal se direcionar quase totalmente para o perdão, o último episódio vai no sentido contrário: uma jovem que mata o homem que lhe abusou. Fica então a deixa de que há contextos e contextos: algumas coisas são mais graves e difíceis de perdoar. Nesse, uma jovem de 18 anos vinda do interior é enganada por um homem que lhe promete amor, mas a violenta e a coloca para trabalhar num bar de uma máfia. No caso das outras histórias, perdoar um pai que lhe causa constrangimento por bater nos filhos dos outros (ep. 4), uma detenta mal comportada que mente sobre seu passado (ep. 8) ou uma jovem que se prostituía (p. 12) é muito mais fácil. Mas não quero fazer uma análise pautada na classificação de algo como mais ou menos grave porque isso é muito arbitrário e varia conforme o que cada um acha que é grave.
Entendo que, em todos esses casos, o que o anime está se propondo é analisar as circunstâncias que levaram algo a acontecer. No quarto, o pai tenta "corrigir" os filhos dos outros por se sentir culpado por ter sido ausente na vida de seus filhos. Ele entende que o fato dele ter criado mal seu filho, levou este a ser um pai ausente, o que, por sua vez, gerou um neto mimado. Obviamente que não é correto e nem defendo que se saia batendo em crianças dos outros (e nem nas suas, aliás). Não é essa a questão. Mas é essa a causa de sua atitude que funciona como um "bode expiatório" para seus arrependimentos enquanto pai. Já no oitavo, a mulher mentiu porque seu passado era constrangedor: traiu o marido e desviou dinheiro de sua empresa. E, mesmo a traição, foi um momento em que ela se sentiu sozinha por seu marido ter ido trabalhar fora e acabou criando um laço com o cara que disse que precisava do dinheiro ou morreria. Do ponto de vista da guarda, é fácil de perdoar até, embora do marido seja mais difícil. Não é "justificar" se ela deveria ter traído ou não, mas o caso é que a situação gerou isso. Só os bons momentos que ela passou com o filho e o marido, permitiram o perdão.
No 12º, entendemos que a garota se prostituía após entrar para uma gangue porque queria fugir da casa em que vivia com um padrasto abusador. Mais uma vez, sem muitas opções, foi o caminho encontrado. No último, é muito mais compreensível também por conta das circunstâncias que envolvem o crime. Não se trata, em nenhum desses casos, de dizer que era a única opção ou o caminho mais justo ou não a ser seguido, mas de entender como o caminho moldou as histórias de cada um. Trata-se de entender, de se colocar na situação do outro e perceber como a pessoa foi levada a tal coisa ou teve poucas circunstâncias de escolha. Claro, perdoar ou não perdoar já é outra coisa, mas compreender é o básico, é o mais humano possível nessa travessia que é a vida.
Considerações finais
Eu queria tratar de todos episódios pelo menos brevemente, mas não consegui encaixar alguns dentro das análises que fiz acima. Assim sendo, quero deixar minhas últimas palavras no sentido de mostrar o que esse anime tem de valoroso. Por mais que possa parecer um anime chato, até moralista, ele é muito mais que isso. Na verdade, de moralista ele não pode ser acusado porque houve o perdão de relacionamentos extraconjugais nos episódios 8 e 9. Já que deste último eu não falei muito, vou aproveitar a deixa. Nele, um homem conhece a amante de seu pai e tem que decidir se vai deixá-la viver com sua atual família (sua mulher e seu filho). A princípio ele não consegue aceitar essa óbvia "imoralidade", da perspectiva da "família tradicional". No entanto, ele lembra de como ela foi uma ótima "segunda" mãe e de como ela sempre mostrou um grande amor pelo seu pai. Ele aceita ela, ao perceber que um casamento e a constituição de uma família não passam de uma "reunião de estranhos", uma construção social abstrata e que os laços reais vão se construindo no dia a dia.
No fim, somos todos estranhos solitários que damos sentido as nossas vidas conforme nos relacionamos com os outros. O episódio 11 também deixa isso explícito. Nele, um senhor discute a necessidade de ter orgulho de si próprio e daqueles próximos a você para incentivar um garoto que sofria bullying por ter vergonha do trabalho de sua mãe num clube noturno. Ele defende o garoto dos valentões e justifica: "Mesmo que eu diga que vivi minha vida sem me envergonhar por nada, a verdade é que, às vezes, é solitário viver por si próprio. Eu não estava sozinho agora porque eu tinha alguém ali que precisava de mim para ser protegido. É por isso que eu encontrei a coragem para lutar com esses garotos e eu acho que isso que foi o que me fez feliz".
Em suma, Human Crossing é um anime multifacetado com histórias muito variadas. Não defenderia com unhas e dentes que é alguma grande obra-prima com valor filosófico (longe disso), mas também não aceitaria que dissessem que é mera ladainha sentimentalista e um monte de histórias aleatórias. Não sei se é "a vida como ela é...", como diria Nelson Rodrigues, mas é uma possibilidade de ver a vida. É um anime sobre todos nós, é um sobre ser humano, sobre nossas falhas, virtudes e contradições. É sobre a beleza da vida e de ser o que somos.
E a mensagem que fica ao fim de Human Crossing é essa: a vida é bela, ou pode ser pelo menos |
Notas
[Nota 1: Baseei o início desse texto numa análise do MyAnimeList sobre o anime que será discutido. Um usuário chamado ArtRodriguez diz o seguinte: "Sempre que você pergunta pro fã médio de anime o porquê dele assistir anime, tipicamente ele responderá com 'anime tem enredos mais maduros que os desenho americanos não têm'. Essas mesmas pessoas vão se virar e ir assistir animes como Bleach e Kampfer e chamá-los de 'maduro'. Bem, I eu digo 'porra, se você vai usar essa razão para explicar porque desenhos japoneses são superiores, você poderia assistir também Human Crossing. É um programa com um significado e uma moral por trás, e deveria realmente ser mais valorizado como uma série." // Traduzido de: "Whenever you ask your average anime fan why they watch anime they will typically respond with 'anime has mature storylines that American cartoons don't have'. Those same people will turn around and watch anime like Bleach and Kampfer and call that 'mature'. Well I say fuck that, if you're going to use that as a reason why Japanese cartoons are superior, you might as well watch a show like Human Crossing. It's a show with a meaning and a moral behind it, and should really be more valued as a series." (https://myanimelist.net/anime/1083/Human_Crossing)]
[Nota 2: Eu comecei assistindo no finado AniTube em 2015, mas depois nunca mais achei ele legendado em português em streaming. Quando retornei a ele em 2017, assisti parte baixando do Malkav Animes (mas foi meio trabalhoso pelo formato .mkv) e uma parte dublado em inglês no Youtube mesmo (mas nunca achei legendado em inglês, por exemplo). Sobre resenhas, não encontrei nenhuma em português. Em inglês até que há algumas e até de sites conhecidos como o Anime News Network e o DVD Talk.]
[Nota 3: Concordo aqui com a conclusão de Theron Martin do ANN: "This is a series for adults, despite its rating" (https://www.animenewsnetwork.com/review/human-crossing/dvd-1)]
[Nota 4: E eu cheguei a fazer dos três primeiros de fato e pensava em fazer de todos. Mas, depois, cheguei a conclusão de que não seria algo que as pessoas leriam, talvez. Sendo que nem é um anime conhecido, não haveria "fôlego" para tanto, imagino.]
[Nota 5: Na quarta tese do livro, Debord diz: "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens".]
[Nota 6: A partir dos 19:41, segundo o player do AniTube: "O que me fez tão feliz não era ter ganhado minha própria bicicleta. O que me fez tão feliz foi como me senti quando o meu pai manteve sua promessa de comprar uma bicicleta. Mas eu, de alguma maneira, comecei a pensar que era feliz porque tinha minha própria bicicleta."]
[Nota 7: LENINE, Vladmir I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. 1913. Disponível em <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm>. Acesso em 11/03/2016.]
[Nota 8: Interessante abordagem sobre essa questão no livro A ideologia alemã é feita por: CASSIMIRO, Hugo Leonnardo. Elementos da Concepção de Relações Sociais em A Ideologia Alemã. VII Colóquio Internacional Marx e Engels, Campinas, 2012. Disponível em <http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2012/trabalhos/7248_Cassimiro_Hugo.pdf>. Acesso em 11/03/2016. Em determinado momento, ele cita os autores alemães: "os homens tem de estar em condições de viver para poder 'fazer história'. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material" (CASSIMIRO, 2012, p. 3). Quando se referrem a "produção dos meios para a satisfação dessas necessidades" estão falando de trabalho, entendido enquanto categoria ontológica de transformação da natureza e transformação do próprio ser humano.]
[Nota 9: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 84-85: "O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. (...)
Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais - comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento - enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal"]