Shoujo Shuumatsu Ryokou: O poder da humildade frente ao mundo



Shoujo Shumatsu Ryokou (“Girls’ Last Tour” ou “The End Girl Trip”) é uma obra que gira em torno de duas garotas Chito (Chii) e Yuuri (Yu) e sua jornada (ou mera andança) por um mundo industrial aparentemente desabitado, onde as lutas diárias por alimento, combustível, água são presentes.

O anime claramente se apresentou em um período em que os shows como Made in Abyss e Gakkougurashi! apresentaram boa recepção frente aos críticos e a audiência, surfando na mesma idéia de um jornada frente a um mundo “desconhecido” (não confundir com um Isekai).SSR (como será chamado daqui para frente) se destaca por inserir uma atmosfera diferenciada das duas animações supracitadas.

SSR nos revela um enredo não muito difícil de ser digerido, sem sombra de dúvida o anime termina sem que se tenha um corpo coeso dos eventos do mundo, é uma jornada de duas garotas em um mundo pós-apocalipse. Poucos são os cortes que revelam o que se precedeu os eventos da obra, temos uma idéia de uma guerra que parece uma mera alusão a um cenário de Guerra Total (como as nossas conhecidas guerras mundiais).  No entanto, o enredo em momento algum carrega a necessidade de desenvolver um prelúdio, ele está ali para que uma atmosfera específica seja criada.

Nesse ponto, permita que esse “crítico” que vos escreve, trace uma comparação entre o anime descrito e a obra supracitada (Made in Abyss), não só para criar a curiosidade dos leitores, mas para que se entenda a mecânica pela qual os fenômenos se desenvolvem em SSR.

Em Made in Abyss a existência da entidade chamado “Abyss” também criava uma atmosfera especifica, mas o elemento Abyss era algo que trazia ao telespectador uma curiosidade latente, queríamos saber os seus mistérios, seus detalhes cosmológicos e biológicos. Em SSR a questão de explicar o que levou ao pós-apocalipse assume um papel quase secundário se comparada com o nosso desenvolvimento de personagem, no decorrer da narrativa o sentimento de que as coisas não serão explicadas da maneira mais coerente e linear é bem marcante e crescente, de maneira que entender o background dos eventos atuais soa mais como um “bônus” do que uma necessidade narrativa.

Cabe destacar que isso não torna SSR um anime mal escrito ou mal dirigido, mas apenas um anime em que os esforços criativos se focaram em um aspecto diferente. Na verdade, talvez pela capacidade de perceber as limitações do desenvolvimento do enredo que SSR conseguiu criar a experiência áudio-visual que será explicada nas linhas seguintes.

SSR toma a figura de duas meninas para explorar o nosso mundo pouco explicado, Yu e Chii apresentam personalidades bastante opostas (opostas, mas não contraditórias), onde Yu assume o papel de ser mais cabeça de vento, mais enérgica, sabe manejar o rifle da dupla, gosta de comer e toma a iniciativa, já a Chii-chan é a nossa pequena enciclopédia, gosta de ler, tem um diário, não gosta de usar o rifle, e apesar de ser mais receosa, ela parece muito com uma voz da “razão” para a impulsividade inocente de Yu.


Analisando isoladamente, pode parecer risível que as personagens consigam apresentar algo mais que um desenvolvimento medíocre e clichê, no entanto a magia se encontra em um elemento que animes como Made in Abyss e Gakkougurashi exploram a sua maneira: Humildade (pode-se ler como “inocência”, se usará as duas palavras como ligadas em um sentindo maior).

Humildade é a capacidade de entender a pequenez da existência e ao mesmo tempo lembrar a sua participação inexorável nessa mesma existência, quanto ao tema, diz Padre Sertillanges: 

“Tende, sim, humildade, porque isso marca a nossa limitação; mas esta faz parte da virtude; dela deriva uma grande dignidade, a dignidade do homem que permanece na sua lei e desempenha a sua missão. Somos afinal bem pouca coisa, mas fazemos parte dum todo e disso nos honramos” (SERLILLANGES, 2015, p.40).

Yuu e Chii são pequenas adolescentes frente a um cenário que um dia deve ter apresentado algum brilho de vida. Elas navegam juntamente com sua moto de guerra, capacetes, roupas militares e um rifle entre as ruínas. Em um mundo industrial falido pode parecer estranho, mas Yuu e Chii fazem os primeiros passos para conhecer a realidade que as cerca. Cada episódio é recheado de uma magia frente as pequenas coisas existentes, cada experiência é uma viagem a um estado único de humanidade pelo olhar de dois seres inexperientes.

A sensação de cada diálogo é uma experiência única na vivência do ser humano no cosmo, os deslumbres das meninas perpassam pelos mais básicos do cotidiano, desde provar um estranho sabor chamado “chocolate”, passando pela dor latente de ficarem em um recinto “escuro”,  até encontrar um ser de olhos estranhos chamado “peixe”, ou mesmo beber um líquido que brilha dourado sobe a luz da lua que apelida-se de “cerveja”. 

Tradução do autor: “É quase como se a luz da lua se derretesse dentro”


Os diálogos e expressões, simplificados pela pura Humildade de Yuu e Chii-chan nos abrem para um mundo novo, só que esse mundo não é um mundo de fantasia (como um mergulho na vivência mais crua e não em uma aventura/mundo de moldes épicos), esse mundo novo é a bela experiência da humanidade com a realidade despida de nossos preconceitos, é um despertar de uma mentalidade antes perdida.

Luis Lavelle, filósofo francês, nos revela o encanto dessa Humildade, e complexifica a experiência o que Yu e Chii-chan retratam:

“O homem crê sempre poder inventar o mundo: mas então abandona-o e deixa de o ver. Se o ser nos é sempre e todo inteiro presente, o orgulho das mais belas invenções deve curvar-se diante da humildade da mais pobre descoberta.” (LAVELLE, 2008, p.14).

Perceba que Lavelle revela que vale mais uma descoberta, os atos concretos de Yu e Chii, do que uma invenção. A máxima “uma imagem vale mais que mil palavras” pode ser aplicado a experiência de SSR, pois nele a imagem da mera alimentação do peixe em um aquário ou de um projétil perto a uma fogueira, tem um peso mais profundo que a construção de muitos cenários mágicos e fantasiosos cheios de animais e plantas estranhas.

Toda essa experiência humana é vivida sem que as personagens percam a dimensão de quem elas são enquanto Yuu e Chii, elas preservam sempre aquele ar individual (que a primeira vista não parecia original). O diretor Ozaki Takaharu não deixou passar a particularidade de cada uma das personagens, em suma, a direção (só por isso) já consegue explorar um elemento narrativo muito forte, de maneira a fazer com que cada episódio tenha uma sequência de eventos que fixa muito a atenção de quem assiste.
Tradução do autor: "Eu sou Deus"
Novamente essa junção atmosférica e essa imersão no mundo mais denso da experiência de Yuu e Chii só é possível graças a um trabalho simples, mas muito sublime da produção e aqui deve-se destacar que tanto animação (cenários e design de personagens incluídos), composição-direção de som e dublagem tem um papel fundamental em criar tudo isso descrito acima.

Como foi dito o cenário é um mundo industrial sem pessoas, esse mundo não vibra em nenhuma cor “viva”. Todo o cenário é um composto de cinza e preto, podemos até enumerar onde essas cores não aparecem: no céu (azul), no fogo (vermelho e amarelo),nas nuvens brancas e no uniforme verde musgo das protagonistas.

Foi falado de um “trabalho simples”, mas nesse caso “mais é menos”, quando vemos a arte de SSR, estamos a falar de um uso acertado de um cenário composto de prédios cinza, pretos e quadrados alguns mais inclinados devido ao tempo outros faltando um pedaço, no entanto, a essência do cenário exala um brutalismo arquitetônico envolvente.




É possível intuir que essa característica simples e humilde de SSR tenha sido proposital. Pode-se observar pelo formato das personagens não apresentam um grau muito alto de complexidade, a única sombra presente é do capacete, os olhos e narizes (esse um acessório raro na obra), e não apresentam a menor profundidade, a mera forma oval com um pequeno traço para representar a boca é o máximo que Chii e Yu tem a oferecer em sentido estético.

Cabe lembrar-se da existência de um CG (computergraphics, ou aqueles momentos que vê-se a mudança do 2d para o 3d) muito rústico nos momentos de maior movimentação. Ele não despertar nada muito relevante, é um reflexo de um orçamento mais apertado que o comum.

Claro que, como dito acima, podemos intuir que tudo na atmosfera de SSR tenha como objetivo imergir nessa experiência pelas coisas pequenas e simples de um cenário não muito complexo, mas misterioso (mas que não é místico nem distante). Talvez Takaharu (Diretor) tenha observado as limitações do enredo de Tsukumizu (criador do web mangá no qual o anime é uma adaptação) e inseriu essa linha de simplicidade, brutalismo arquitetônico e minimalismo de uma maneira mais destacada (essas linhas existem no mangá, mas não tem a mesma intensidade que na obra animada).



Retirado do capítulo 10 do mangá. A capacidade da animação de “organizar” a bagunça do cenário é bem clara e marcante.

No entanto, se podemos falar algo que não é simples nessa obra, com certeza seria a trilha sonora. A Direção de som de Aketagawa Jin (mesmo de “Toradora!”, “Shokugeki no Soma” e “Shigatsu wa Kimi no Uso”) sem sombra de dúvidas fez jus ao próprio nome e legado, não existe um momento em que a soundtrack não tenha sido bem inserida.

Ao escutar a  soundtrack separadamente é possível imaginar a dificuldade que algumas composições de Kenichiro Suehiro poderiam causar a um diretor de som de menor calibre, é imprescindível destacar uma coisa marcante na composição de Suehiro: as músicas não apresentam uma base fixa tão repetitiva, muito comum nas grandes obras (basta ouvir em isolado a soundtrack de Shingeki no Kyojin, Boku no Hero Academia, Guilty Crown, Sword Art Online).

Se pudéssemos destacar soundtracks que além de muito bem compostas são difíceis de serem inseridas na trama, mas que Aketagawa inseriu com maestria cirúrgica, pode-se destacar muitas, mas a maior seria “Owari no Uta”, “Toki no Kioku” e  “Kotae wo Sagashite” (cabe ao leitor escutar o disco completo para melhor entender o ponto). A cena em que “Owari no Uta” é inserida pode ser considerada uma daquelas cenas de qualidade impar e uma das belas cenas da temporada.



Vários elementos nessa cena são marcantes, mas quando analisando-a apenas pelo som é sem sentido, quando apenas pelas imagens ela é infantil e forçada. Mas sem sombra de dúvidas quando os compostos são arranjados no conjunto, tem-se uma cena genial.

A abertura e o fechamento são cantadas pelas dubladoras de Yu e Chii (Kubo Yurika e Inori Minase, respectivamente), que fazem um ótimo trabalho de dublagem, conseguem passar muito do que os personagens são, Inori foi ajudada pela sua participação enquanto Yuki em “Gakkougurashi!”, anime que trata da mesma temática.

Em uma análise geral pode-se afirmar que Shoujo Shuumatsu é um anime que trabalha um tema já explorado intensamente, e por isso procurou explorar técnicas e meios mais únicos para criar a sua narrativa e estilo. Talvez tirando um problema pontual no CG de movimento e o problema óbvio de um enredo que não conseguiu apresentar o mundo como um todo único e coeso, sendo mais um coxa de retalhos que tenta se remendar no fechar das cortinas.

SSR é um anime para aqueles que buscam ver técnicas narrativas mais heterodoxas e que procuram ver obras mais holísticas, ou seja, pessoas que buscam mais uma atmosfera diferenciada do que um enredo perfeitamente arranjado.

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